30.12.2020 Interessa-me particularmente o ano
I
“A pandemia
trouxe uma reacção que me espantou: a facilidade com que se obedeceu”. José
Gil - a mesma perplexidade que tenho sentido - e um espanto com (finalmente)
direito a prime-time televisivo. Mais do que a facilidade em obedecer, é a facilidade com que
se pede para obedecer. 2020: o ano da súplica. Face ao medo, o ser humano
precipitou-se, irreflectidamente, para fora-de-si (em uníssono). O Eu entra no
carril de uma multidão assutada, impulsiva, sem rosto, que apenas quer
continuar, biologicamente, viva. “Que força é essa? Que só te serve para
obedecer? Que só te manda obedecer?” 2020, o ano em que percebeste como era
tão fácil deixares-te seduzir pelas delícias da paranóia e embarcaste, sem destino, com essa turba alucinada.
II
Quanta da tua
liberdade és capaz de prescindir em troca de segurança? Dúvida antiga,
repisada. Em 2020, toda a liberdade em troca de segurança – movimento, toque,
rosto, escolha – nenhuma liberdade é melhor que a morte: concluiu-se (há mais
hipóteses). 2020, o ano onde o que mais importou foi o coração bater. O grau
zero é um coração a bater: de um escravo ou de um entretido em streaming – o
batimento continuo, ritmado e copiado, da vida. 2020, o ano em que se contou
mortos e feridos como se estivéssemos a jogar.
III
Tiraram-me a rua
em 2020. Podes ler sobre ruas em poemas, ensaios e contos eróticos. No anuário
ilustrado 2020, não compreenderás a rua – só o seu simulacro digital. A rua é do
século dezanove. O café é do século vinte. Ou vice-versa. A rua é do século
dois e do quinze. A rua não é do século vinte e um. Consegues seguir-me nos
labirintos das bibliotecas? Não? Nem na rua: há que, constantemente, ir
definindo a resistência.
IV
2020, o ano em
que fiquei velho. Tiraram-te os corredores da universidade, onde aprendeste
tudo: a pensar, a sentir, a tocar, a escolher. O que te faz falta? Aquela
entrada triunfal por entre (as mesas do restaurante, as cadeiras do teatro, a
pista de dança) a multidão? Ainda te vestes? Ainda te maquilhas? Para uma
última foto – um primeiro like? A seguir ao bater do coração, o que te faz
falta? Continuar a bater – resposta errada. Bater por um propósito. Estar vivo
não é um propósito, é apenas uma evidência complexa.
V
Sabes que podes
sentir (ou ser) várias coisas contraditórias ao mesmo tempo, não sabes? Medo e
fúria, por exemplo. Mas há mais: igualdade e egoísmo / revolta e pertença /
paranoia e reflexão / utilidade e criação / passividade e resistência / tédio e
arrogância (não são um contrário: avança). Lembrar-te-ás de 2020 como aquela
pausa forçada, em perda, em desnorte, desumanizada e inconcebível pela razão:
como foste capaz de ir sempre atrás? O coração ia batendo, entretido. O senhor
é teu pastor: definir rebanho.
VI
Dois mil e
vinte, o ano em que me tornei velho, irónico, conservador, decadente, cáustico,
diarista, desempregado, ilegal, político, pessimista, egoísta, visceral, historicista,
publicado, atípico, proprietário, ensaísta, resistente, panfletário, letrista, paranoico, equilibrado, melancólico e snobe. Dois mil e vinte, o ano em que comecei a perder o cabelo, o dinheiro e
a utopia.


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