04.01.2021 Interessa-me particularmente o ano II
I
“Haverá quem
responda: Jano tem poder sobre todos os começos e é por isso que está certo que
lhe atribuem os preliminares da concepção.” Interessa-me particularmente
esta descrição de Agostinho de Hipona na Cidade de Deus, que atribui a Janeiro,
não especificamente a concepção, mas os seus preliminares (um termo
especialmente erotizado que tão bem se adequa a Santo Agostinho). Sobre um deus
de duas cabeças - ou apenas dois rostos - dir-se-á que uma olha para trás (2020)
e outra para a frente (2021). Jano, aquele que “precede e prepara”;
ou ainda, Jano, aquele “que serve para fazer compreender.”
II
Se a Janeiro atribuíssemos
esse tempo em equilíbrio que “precede e prepara”, tal poderia querer
significar que Fevereiro seria um mês de acção: mas Februus, o deus da morte e
da purificação, acrescenta-nos ao tempo preliminar o seu processo de simplificação
e redução elementar. Como se, mesmo depois de se “compreender” o
caminho, tivéssemos de nos livrar (depois e não antes) dos pesos em excesso para a
viagem (de nos livrarmos de nós, quem sabe?).
III
Contas feitas, 2021 poderá começar então em Março ou
ainda em 2022 – não se sabe. A vacina, enquanto placebo de esperança, arrastar-se-á
por meses, em círculos descoordenados: quando tu estiveres escudado, eu ainda
não estarei e serei ainda um criminoso (e vice-versa, repete). “Mas então o
que habilmente se pretendeu foi desculpar os deuses e não debelar a peste!”
2021 poderá não chegar sequer a existir, rastejando-se enquanto simulacro sucedâneo
de 2020, continuando outro ano de aceitação de muitas respostas a perguntas
que nunca fizemos. 2021 começa com
menos medo e mais esperança, é certo, mas com a mesma ausência de curiosidade:
há uma necessidade de continuar a não compreender a peste para se aceitar a
peste. Se 2020 foi o ano da súplica, 2021 será o ano da aceitação.
IV
Mas se (inversamente) em 2021, fizermos as perguntas que nunca fizemos em 2020, será pelo menos um ano mais criativo em
fábulas que nos expliquem os porquês das perdas: movimento, toque, rosto, escolha.
É necessário ensinar aos adultos a ser criança: e porquê? Mantra repetido a
cada dia - ou o hábito levará por diante a sua prolongada conquista. 2021, o ano do hábito e/ou 2021, o ano
dos preliminares da concepção (de que utopia?)
V
A resistência em ir ao cinema de manhã durou-me até ao dia um de Janeiro. Sair da sala de cinema de dia: uma nova imagem de uma organização social sem perguntas. Resiste-se com as armas possíveis, de dentro para fora. Até quando aceitaremos a restrições dos horários em 2021? Janeiro, Fevereiro, Março, hábito. “Mas a astúcia de espíritos nefandos, prevendo que a seu tempo terminaria aquela peste, teve o cuidado de inocular outra muito mais grave e do seu pleno agrado, desta vez não nos corpos, mas nos costumes. Esta peste cegou o espírito a estes desgraçados...” Agostinho, aquele que deu tantas respostas a tão poucas perguntas.
VI
Dois mil e vinte
e um, o ano em que continuarei velho, irónico, conservador, decadente,
cáustico, diarista, desempregado, ilegal, político, pessimista, egoísta,
visceral, historicista, publicado, atípico, proprietário, ensaísta, resistente,
panfletário, letrista, paranoico, equilibrado, melancólico e snobe. Mas, dois mil e vinte e um, o ano em que (contudo)
não perderei mais cabelo, nem mais dinheiro. Dois mil e vinte e um: o ano ideal
para os preliminares da utopia.
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