14.01.2021 Interessa-me particularmente a inutilidade

 

 


I

Talvez fosse capaz de aceitar, se fosse possível e funcional, tal coisa como como um confinamento-geral: uma espécie de prisão domiciliária voluntária, asceta, onde cada-um - há falta de livros ou de companhia - se divertiria a jogar à macaca, atirar dardos ou bordar, entre outros passatempos medievais. Na sua impossibilidade, resta-me (resignadamente, ou talvez não) usar o espaço público que me calhou em sorte para lhe mudar o nome: este confinamento-geral é tão somente uma suspensão do Lazer e da Cultura (colectiva e fora de casa).

II

Isso é grave? Nem por isso! Não está muita gente importada, inclusivamente os próprios. Neste estranho unanimismo de sentido único, amedrontado e irreflectido, a inevitabilidade de limpar algumas gorduras artísticas (e de pensamento) de um sistema económico, é prática aceite pelos melhores contribuintes. O cidadão-comum continua implacável no seu aplauso: Sim ao encerramento de bibliotecas, Não a “lojas de ferragens e estabelecimentos de venda de material de bricolage”; Sim ao encerramento de hipódromos, Não a “escolas de condução e centros de inspecção técnica de veículos”. A lista, tão bem fornecida em serviço-público pelo Expresso é extensa e sugere-se a quem tenha conta no Twitter e queira passar uma boa meia-hora de indignação primária e visceral.

III

Regressamos a Teixeira de Pascoaes, só para nos poupar linhas de argumentação. “Sem uma concepção poética da vida, o nosso planeta seria apenas um refeitório e um cemitério. Ou então a Churchill, quando confrontado com os custos de um financiamento para a arte em tempos de guerra Então, para que estamos a lutar?”.

IV

Amanhã, de volta a casa estão todos os inúteis e os seus públicos Em casa já estavam os úteis privilegiados sem público. Ontem, em Santa Catarina, a high-street, a fila da Bershka acomodava-se cumpridora, ordeira e espaçada ao longo de uma rua pedonal sem peões, onde o cidadão-comum, bom-contribuinte, esperava a troca. À mesma hora, ainda que de manhã, talvez já houvesse uma sessão de cinema para quinze pessoas, enquanto que nos transportes-públicos se amotinavam trabalhadores semi-essenciais. Da minha parte, comprava lâmpadas numa loja vazia e olhava dois velhos numa esplanada ensolarada. O legislador não vive na mesma civilização que eu. Mas isso já sabíamos.

V

Porque é que o Lazer e a Cultura foram cancelados e a Santa Comunhão não? A resposta é fácil. Resignado (ou talvez não), regresso amanhã a casa para uma longa reclusão. Dizem-me, em aclamação, que sou mais útil na inação. Como profissional de um lazer caro e de-nicho, encontro-me do lado criminoso: uma evidência antiga, agora renovada.

VI

Quem não acredita que suspender o Lazer e a Cultura resolve a pandemia devia mas é ir à missa. É toda a indignação que nos é possível sem tocarmos numa qualquer fanática teoria-da-conspiração. Eu cá por mim, trocava os “estabelecimentos de lavagem e limpeza a seco de têxteis e peles” por um mês de “museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos ou similares (centros interpretativos, grutas, etc.)”. Mas isto sou eu que lavo a minha própria roupa. E tu? Precisas mesmo deste confinamento-geral para aprenderes a lavar as mãos, ou és dos que acham que são os outros que precisam?

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