15.01.2021 Interessa-me particularmente votar

 

 

I

Só por uma única vez votei com entusiamo. E foi recente: março de 2019. Desde que posso, com a minha própria caneta (os motivos não eram ainda higiénicos, mas simbólicos, pois claro) não falho um dia eleitoral. Entre votos úteis (em pessoas), inúteis (nulos) e de protesto (à esquerda), tenho levado a cabo uma nobre e calculada tarefa de viabilização do processo democrático. Sou desses! Acuso-me. Gosto da ideia da democracia, da República, das instituições, mas tanto como gosto da ideia do indivíduo, da resistência e da utopia. Também sou desses! Dos que sabem que não precisam de escolher uma trincheira ideológica estanque para serem coerentes.

II

No próximo dia vinte e quatro atribuí-me duas tarefas, que não sendo particularmente originais, são essencialmente necessárias. A primeira: não contribuir para uma aclamação unânime, sem-esforço, de um só-homem-rei por uma larga maioria. E tal é perigoso? Depende do homem (porque, a ver pelo atavismo da coisa, tão cedo não teremos uma mulher). Mas como os humanos mudam, dizem-nos as boas práticas que mais vale jogar pelo seguro e criar artifícios-barreira ante o mal que aí pode vir. A segunda: contribuir para que um divertido e deslavado saco-de-gatos, que miraculosamente agrupa um conjunto de desiludidos impudentes com a pior porcaria humana, encabeçado por um fofinho arrivista não receba munições através de um posto, para cavalgar rusticamente na nossa Ágora.

III

Voto útil, dir-se-á? Orgulhosamente útil, tão útil quanto a democracia, as instituições e a santa comunhão. Voto ligeiramente entediado, mas ainda assim tranquilo com a ideia: se por virtudes fenomenológicas do destino, o lugar de vencedor pudesse ocupar, estava-lhe simbolicamente bem entregue cara Ana.

IV

Interessa-me particularmente, nos dias que correm, meia dúzia de temas e seus derivados: a obediência cega e messiânica face às soluções para a pandemia; a injustiça social; o tecno-feudalismo; a regressão cultural em potência; a digitalização da vida; a extinção humana pelo ambiente. Disto, pouco parece jogar-se nesta eleição. Se é de um cargo mais-ou-menos simbólico que se trata, tratemos então também o nosso voto na mesma medida. Voto útil, táctico, estratégico, sim, nunca esquecendo que a política é sempre, afinal, “a arte do possível

V

Ontem, enquanto ouvia divertidamente António Costa na televisão, reconhecia que se passou quase um ano e nunca lhe dediquei uma linha. Se não o faço, é talvez pelo reconhecimento da irrelevância que um político nacional de um pequeno país, que tem como sina não sair da cepa-torta, tem na gestão (de uma pandemia) global. Por muito que as acções (e as inações) de Costa me irritem e revoltem intestinamente e que por-vezes me prejudiquem injustamente, tenho de reconhecer: temos sorte em ter Costa a governar este reino cujos súbditos não se cansam de pedir a autoridade de um salvador. É tão fácil em momentos particulares como este descambar-se para o autoritarismo. E é precisamente aqui que a educação de um primeiro-ministro tem contado.


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