18.01.2021 Interessa-me particularmente a inutilidade II
I
Entrei voluntariamente
em prisão-domiciliária (não asceta). Poderia tirar partido das cinquenta-e-duas
excepções ao falso confinamento-geral - do Lazer e da Cultura - mas não o
farei. Motivo: coerência. Repetirei (quase) a mesma paranoia. Com um
morto luso pela peste, punha a roupa a corar à varanda de cada vez que ia ver-as-vistas. Com
dez mil mortos pela peste (e os indirectos meu senhor?), apenas tiro os sapatos à entrada. Temos de evoluir,
até nas paranoias, nem que seja ao inverso.
II
Parece que de
um momento para o outro a obediência virou o bico-ao-prego. Onde antes havia
medo, agora há ousadia. Discorda-se. É o mesmo Português em coerência:
a mesma carência de reflexão (falta de capacidade de análise – um motivo).
O cidadão-contribuinte é incapaz de medir o seu medo através da análise –
apenas da impressão, da sugestão, da aceitação da unanimidade. O cidadão-contribuinte
copia, repete e mimetiza: se ele pode (se ele vai) eu também posso (também
vou). Pelo meio, um propositado e táctico erro de comunicação da
administração central que usufrui do motivo para a causa.
III
“O que importa
não é apenas que um indivíduo sobreviva, mas que a felicidade do indivíduo
sobreviva, se mantenha. Saúde vista assim como um sinónimo de bem-estar, de
bem existir, eu diria: de bem não morrer”. Gonçalo M. Tavares de
antes da peste. Se me retiram o alimento do método de felicidade fora de casa,
resta-me a casa. A supressão do Lazer e da Cultura (fora de casa e colectivo)
confina-nos dependentemente em casa. Ficar em casa para bem-não-morrer:
tudo o que alimenta o movimento invisível está agora irremediavelmente em casa
(mas também há alguma felicidade na fila do supermercado, pois claro).
IV
A rua
enquanto lugar de indignação e injustiça: os que queriam andar
(trabalhar) na rua e não podem; os que queriam voltar para casa (teletrabalhar)
e não podem. As cinquenta-e-duas excepções serão reduzidas daqui a umas horas.
Tanto me faz. Voluntariaram-me para a inacção e eu aceitei pacificamente o
meu papel. Pacifismo: não me indignar com a injustiça para além da folha de
papel. Aceitação: tirar partido de algo, inclusivamente, através de uma folha de papel. Outras notas:
manter a coerência.
V
“Como
entender, por exemplo, a existência de vacinas gratuitas, e não a existência de
uma alimentação mínima gratuita?” Voltaremos ao Rendimento Básico
Incondicional daqui a uns dias. Nunca deixou de ser preciso, mas é agora ainda-mais fundamental: um RBI para os provocadores do Lazer e da Cultura – já –
um RBI para os consumidores do Lazer e da Cultura – depois. “Poderás
morrer por insuficiência de alimentação, mas não por causa de determinadas
doenças” ou ainda, poderás morrer por insuficiência de lazer e de cultura,
mas não de peste - uma simplificação para os nossos dias e as nossas causas.
VI
Gosto desta
ideia de Gonçalo M. Tavares (gosto de todas) da fome que é vista apesar de tudo
como “não contagiante”. Deve o Estado só intervir quando há
riscos de contágio? Como tornar o Lazer e a Cultura contagiantes, de forma a fazer o
Estado intervir? Nota: já são contagiantes. O contágio é, por enquanto,
particularmente invisível aos olhos de quem não foi contagiado. Acção: tornar
o contágio visível.
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