25.01.2021 Interessa-me particularmente o virtual
I
Há uns anos, nos corredores da universidade, debatia-se se uma obra de arquitectura poderia ser apreendida (conhecida) através da sua imagem. Uma fotografia de uma avó não é uma avó – pelo menos no que toca a saudades – dizia o Souto Moura. Não sei o que se debate hoje, em tempos virtuais, nos corredores da universidade (ou sequer se ainda se debate). Sei que cá fora, há ainda uma certa superioridade entre o que esteve (porque viajou, saberá o futuro o que tal é?) e o que viu (numa revista). Porque a arquitectura é afinal medida a passo – qual é o papel da medida nos tempos em que o passo é policiado?
II
Um corredor da universidade é uma arqueologia pré-virtual. O Miguel embirra com o virtual: diz que tal-coisa não se poderia assemelhar a virtude. Não diz bem isto, digo eu. Estar encerrado espacialmente com a medida (o passo) limitada nada tem de virtuoso. O virtuoso virtual, enquanto aquele que apreende (conhece) o mundo através do ecrã é afinal, um novo não-assunto, talvez. Entre aquele que conheceu porque esteve (viajou) e aquele que conheceu porque viu (através do ecrã), poucas diferenças se registam: desde que o tenha feito de forma apaixonada – um diferenciador.
III
Ontem vesti camisa. Não o faço com muita regularidade por estes dias. Só a experiência real potencia a vaidade: ser visto por olhos, não por ecrãs (ex-lentes). “Algoritmos são os olhos técnicos que te vigiam. Nem sequer lentes; as lentes - das câmaras fotográficos e de filmar - foram os olhos do século XX. No século XXI, lentes e olho humano são artefactos obsoletos ou células desactualizadas.” Ontem vesti a minha melhor pose. Um escasso mas significante epifenómeno colectivo foi-nos permitido – votar. A festa da democracia tornada festa do real: quase que se poderia tocar. A ida à urna de voto enquanto acto colectivo não egoísta - e espaço de vaidade - contrapôs com a visita ao supermercado (utilidade individual e primária), a outra possibilidade mensurável.
IV
“Aproximamo-nos assim do sentido moral, para não dizer religioso, do virtual: caso se veja fisicamente impedido de cumprir os seus deveres, não há razão para não tentar fazer uma coisa parecida em casa”. A casa enquanto espaço de simulação real: quanto tempo até ao hábito? Quinze dias para trocar amigavelmente a sala de cinema pelo ecrã do tablet. Meio ano para deixar de ter interesse em jantar fora. Quatro anos até deixar de querer ir, medir, a passo, a arquitectura: a viagem.
V
“O gesto doméstico sai da domus e está já na polis, o século XXI mostrou e mostra isso. No limite, a internet dinamitou por completo a separação entre casa recatada e individual e o vasto mundo. Não precisas de sair da porta para fora para sair de casa e entrar na cidade.”
VI
Ontem, até parecia que não havia peste – apenas um simulacro virtual de uma experiência real colectiva. Primeiro, vesti uma camisa, fui ali, colectivamente e depois vim para aqui, onde sou, virtuoso-virtual. O rescaldo do real, pela noite fora entre acrílicos e máscaras: não houve abraços, mas pelo menos, também ninguém ganhou - a derrota enquanto ausência de abraço.
VII
Talvez tivesse dado jeito, para o caso, não ter abandonado o Baudrillard à sua sorte no meio da prateleira enquanto me divirto noutras simulações. Talvez este pequeno e inútil texto tivesse ficado mais agradável. Talvez. Na falta de melhor, cita-se outras coisas: “Mas estamos vivos e por enquanto a nossa cegueira ainda não desistiu do tacto. Os ecrãs são capazes de muito e de muito pouco - e esse pouco de que são capazes alude àquilo que no humano ainda exige murmúrios e temperaturas altas.”
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