28.01.2021 Interessa-me particularmente o jornal

I

O Jornal do Fundão noticiava: “Morreu o homem que lia jornais”. Nem abri a notícia. Não conheço o homem e prefiro ficcioná-lo. Desde o início da peste que desenvolvi a viciante obsessão de ler jornais. Virtudes da vida digital. Todos, e a toda a hora. Dois refreshes por cada quarto-de-hora nos que gasto dinheiro. Meia dúzia de olhares diários aos que mal consigo entender sem tradutor. Já há muito passei da saudável fixação a uma dependência neurótica: culpa-se a peste e continua-se, como em qualquer outra coisa.

II

O cartaz do THX 1138 do George Lucas aparece com o alerta necessário “The Future is Here”, não sem de seguida pacificar “Stay Calm”.  Um cartaz – uma base com a proporção certa de uma insta-story. Porque não aborrecer o meu-mundo com a minha neurótica compulsão? E nasceu um projecto, sem nome, sem regularidade, sem objectivo, sem retorno: uma insignificante rúbrica continuada nos dias, feita de recortes de um presente já distópico debaixo da peste. Fragmentos com medo de um futuro (digitalmente) policiado e a caminhar moralmente em regressão.

III

Primeiro, amaldiçoámos a palavra. Agora, banimo-la. Já não falamos em nova-normalidade. Já aceitámos isto. Um hábito, diz-se, constrói-se em noventa dias. Um hábito que parte da excepção para criar regra. A irritação de ontem já não causa urticária hoje. Restrição dos movimentos, desincentivo ao colectivo, ausência de toque, virtualização da vida, proibição do pensamento: fragmento de um jornal, o dia-a-dia.

IV

Um hábito, diz-se, constrói-se em noventa dias e já vamos a chegar aos trezentos. Quantos novos hábitos cabem em trezentos dias? Notícia: a Polónia (re)habituou-se a proibir o aborto. Notícia: foi criada uma app para, quando te cansares da tua janela-do-confinamento, poderes ir espreitar à janela do vizinho, do outro lado do mundo. Notícia: um país civilizado paga aos seus habitantes dois mil euros para irem viver para outro lado. Notícia: para respirar em Manaus, cada hora custa quinze euros. Notícia: os cães já sabem farejar a peste.

V

Não foi por falta de aviso que a excepção se tornou regra. Foi por laxismo, desinteresse, passividade e hábito.O futuro está aqui”, debaixo deste calmo arco-íris, num banco de jardim traçado por umas fitas da polícia. O que é que te apetece fazer? Deixa lá, a mim, pouco mais do que pegar numa nociva obsessão e dar-lhe uma utilidade primária: comunicar-te que aquela ideia progressista do mundo que tu e eu acreditávamos está, dia após dia, a ir pelo cano da seringa abaixo.

VI

Durante os próximos tempos de peste, numa conta de Instagram perto de ti, estará o futuro, mas por favor, a última coisa que tens de fazer é manter a calma.

 

 

 


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