01.02.2021 Interessa-me particularmente os noventa e nove
I
Um banco de praça, vedado pela protecção civil revela algum cuidado na ordem. Se a fita fosse da Polícia,
a interpretação talvez fosse outra e as gentes poderiam amotinar-se revoltosas, como em
Paris. Mas isto por cá não é Paris, apenas uma débil e retardada cópia,
como dizia o outro. E ainda bem. Os nossos meliantes não são instruídos e
como tal, incapazes de se aglomerarem em orgias de música comentada ou coléricas conspirações contra
o regime – e os que o fazem, vêem a sua vontade de potência desvitalizada automaticamente, aquando
da sua publicação nos jornais. Não. Por cá, o prevaricador só cobiça, ou um
último jogo de cartas em fim de vida ou banhos de sol (problema resolvido
em infindáveis semanas de nevoeiro).
II
Este é o Interessa-me
particularmente número 99. Começou-se pela defesa de uma ideia: o Rendimento
Básico Incondicional como solução para as pestes, crises e velhas desigualdades.
Utopia falhada. Entre devaneios privados, crítica social, memórias e outras
artes, seguiu-se quase uma centena de textos públicos, tão despreocupado
como pretensiosos. Por vaidade, por pura vaidade. Ou ainda por vontade de
comunicar, em tempos onde a sedução é recusada aos sentidos do costume. Noventa
e nove e mais meia-dúzia de colaborações em jornais e revistas da especialidade
em generalidades: eis dois mil e vinte, tudo o resto (os planos) me foi
vedado por uma fita da protecção civil.
III
Entre os noventa
e nove: metade, talvez falem da sorte. Entre outras sortes, de importância-maior, a sorte de ter nascido “no
cume da cabeça” deste ocidente civilizado e não num outro qualquer lugar onde
a marca da liberdade é uma precária embarcação que se direcciona para cá, a
Europa - essa sorte que era boa se existisse – e é tão utópica para
nós como para eles.
IV
Entre os noventa
e nove: outra metade, talvez falem da utopia. Entre outras utopias, de importância-maior, a utopia de desejar um
cenário feito de fragmentos de tempos recentes com fundações antigas. Uma
colagem onde a democracia ateniense se funde com o iluminismo e uma mesa de
café é o símbolo da mistura cultural de um recinto sem fronteiras. Pouca sorte
tem a utopia.
V
E voltamos ao etiquetado
banco da praça, símbolo-imagem de um espaço: a peste, enquanto momento controlado
pela protecção civil e, portanto, aparentemente não militar
(policial). Hoje, enquanto escrevo, há afinal militares (polícias) nas fronteiras
terrestres e aéreas. A Portugal não chega um bote; de Portugal não sai um bote.
Portugal é um espaço em espera, entretido. Que tipos de entretenimentos são permitidos?
Alguns, excepto o jogo de cartas no banco da praça.
VI
Por falar em
jogos de cartas, uma empreendedora holandesa resolveu criar um baralho sem
género: retirou o rei, a rainha e o valete e substituiu-as por coisas neutras
(e frias) como metais. Por sua vez, o xadrez, não é tão dado a modas de linguagem (e de indignação) e permite-se
à passagem dos tempos. Há alturas em que se sacrificam primeiro os peões. N´outras,
os bispos. Hoje, podemos escolher defender a rainha ou usá-la enquanto valente e destemida guerreira. Já do rei, parece que estamos sempre dependentes, ou então,
orgulhosamente derrotados em loop.
VII
Dez meses de peste
e eu ainda não conheço outro jogo para me entreter, senão a escrita.
Comentários
Postar um comentário