03.02.2021 Interessa-me particularmente a escolha

 

I

O centro erótico de Amsterdão vai ser deslocalizado. Motivo: má vizinhança. Ao que consta, 90% das trabalhadoras do Red Light District estão muito bem, muito obrigada. Os maus-vizinhos são afinal (ao menos isso) os turistas. O centro de Amsterdão, sem turistas Red Light e free-access às drogas, pode mandar retirar os torniquetes (ou era só em Veneza?). Amesterdão já pensa no pós-pandemia. O pós-pandemia enquanto espaço para a circulação turística (movimento) e para o contacto carnal (movimento acelerado).

II

Gosto da ideia do Red Light District enquanto proposta civilizadora de dois símbolos malditos: o comércio e o sexo. Já nos tempos do Senatus Populus Que Romanus havia Red Lights, ou toda uma cidade era um distrito vermelho? Entrincheirada entre culturas de cancelamento e omissão e rusticidades patriarcais, Amsterdão aparecia como um espaço moderado, de aceitação e lei. Amesterdão foi também das cidades mais elitistas que visitei. E esta cidade que conseguia estruturalmente camuflar a sua pobreza, prepara-se para agora para esconder (afastando) a sua diferença: I AMsterdam, uma cidade turística igual às outras. Como se desenha o rés-do-chão de uma cidade (para o turismo) purificada?

III

O Red Light de Antuérpia é uma humilde imitação higiénica de Amsterdão. Higiénica no seu sentido arquitectónico – visualmente contemporaneizada na limpeza das patines e das grafias. Um novo Red Light em Amsterdão vai ser mais uma reciclagem de Antuérpia, do que uma auto-actualização. Fez-me lembrar aquela ideia da Fran Lebowitz em que os Americanos hoje imitam os arranha-céus dos Árabes que já tinham copiado os Americanos. A cópia, da cópia, da cópia - a auto-cópia filtrada pela descaracterização (duplamente) higienizada dos tempos.

IV

Como desenhar a cidade para os tempos da ofensa? Confina-se a aristocracia indignada ao lugar das redes-digitais e liberta-se o espaço-público (o antigo) de volta à resistência. No fim da peste, espera-se que alguns de nós não voltem – verdadeiramente - a sair de casa. Do alto do meu privilégio olho a cidade e espero poder voltar para a desenhar.

V

No burlesco cenário, o que escolho ver, pode não ser o que deveria ver. Do alto do meu privilégio estético decido ver o Red Light enquanto símbolo da escolha individual e não um ofício involuntário sem alternativa. No Red Light escolho ver cidade e não pessoas – e não é só aqui.

VI

Chegámos a Amsterdão de comboio, vindos de Paris. Depois de Paris, qualquer cidade parece uma falsificação frugal. Preparava-se para chover, a estação estava em obras, o tram era caríssimo e o quarto de hotel, branco-asséptico, mas luminoso, era apenas da largura de uma cama de casal. Da viagem, (não desta, de todas) salva-se a memória, em tempos confinados onde nos querem fazer querer que um ecrã é tudo o que precisamos para um futuro sempre no presente.

VII

Viva 2024! Do alto do meu privilégio, espero poder voltar a viajar (e a desenhar cidades). Do alto do meu privilégio, luto pelo Rendimento Básico Incondicional: o único mecanismo capaz de nos fazer perceber se o Red Light District é afinal ou não, uma escolha voluntária.


Comentários

Postagens mais visitadas