11.02.2021 Interessa-me particularmente a arquitectura (ou os quartos de banho)

 


I

Na faculdade, um dos piores erros de projecto que poderíamos cometer era a conhecida: Suite à Rio Tinto. Uma destas espécimes espaciais, maravilhas dos mais indignos subúrbios, era conseguida quando, num quarto (de casal) não conseguíamos desenhar um pequeno hall ou uma antecâmara envolvida por um armário, que conseguisse esconder a porta do quarto de banho e não a deixar franca (à loiça sanitária), à merce dos olhares enjoados vindos do leito. Só um casal suburbano, que não se recosta na cama a ler Proust enquanto colecciona umas últimas gotas de um earl grey na melhor china, aguentaria tal visão do Hades: talvez, pela porta do wc, se avistasse a sanita! Pois bem, na nossa penthouse de quarto-andar, no centro (quase) histórico, que olha as costas da expansão económica da segunda metade de mil e novecentos, não só temos uma Suite à Rio Tinto, mas uma Sala à Rio Tinto.

II
Do sofá onde me sento, a ler Proust ou coisa que o valha, a beber vinho de 2,5€ (a garrafa!) em copos do hipermercado: vejo a sanita. Claro que posso sempre fechar a porta, mas confesso que nem sempre o faço. Bataille dizia que “nascemos entre as fezes e a urina”. Citar um dos melhores homens de letras, ainda por cima francês, para justificar uma opção de projecto fica sempre bem, mas não ajuda a passar a Projecto III. Continuamos para o português “uma casa, então, feita não para o homem, mas para o seu corpo, para os seus órgãos; uma casa, diremos, anatómica; uma casa fisiológica e não espiritual. Uma casa orgânica e não intelectual. Eis então que esse tal corpo que cheira dá ordens à arquitectura”. Gonçalo M. Tavares, quem mais? E ainda por cima, bibliografia distinta, nas melhores cátedras.

III

A vantagem de, dez anos depois, ser mais arquitecto de interiores do que artista (ou burocrata, depende dos casos) com licença para construir, é que se pode escolher - e justificar - ter a sanita a olhar para a paisagem (através de um espelho). É ilegal? É provável. É imoral? Bastante. É agradável? Muito.

IV

O que procuramos numa casa? Replicar o foyer do teatro na sua versão americanizada do socializante to entertain ou desenhar um “retrato das nossas dependências físicas”? Poder responder: depende – é a parte encantadora da nossa profissão. Do sofá onde me sento, a ler Proust (ou a tentar escrever como Proust) vejo-a no largo espelho, a desmaquilhar-se, lentamente, como qualquer processo de redução social à expressão íntima. A dependência sanitária pintou-se de azul petróleo (E702) do chão ao último azulejo, da bancada ao poliban (diz-se, em erudição, base-de-duche). Três ou quatro apontamentos em dourado – para o contraste. Duas molduras com fotos pessoais e sentimentais.  E um candeeiro de pedra exótica e latão, que custou mais que a mensalidade da creche dos nossos sobrinhos (ainda bem que somos filhos únicos!).

V

O que esperar da organização espacial de um apartamento para um casal sem filhos é significamente desigual de um lar para uma família de perspectiva conservadora. Uma base de duche que encara a biblioteca, e que se torna incómoda para uma tele-escola infantil, faz-se deliciosa enquanto recreio da meia-idade.

VI

Durante meses-pandémicos redesenhámos exaustivamente: rotações de porta, armários-biombo, antecâmaras poéticas de vão-de-escada, painéis deslizantes, artifícios artísticos e walk-in-libraries. Mas por vezes - mas só por vezes - fazer boa arquitectura pode ser apenas escolher deixar uma sincera porta do quarto de banho oferecida sobre a larga mesa multi-tasking onde termino este pequeno texto. A porta, mantém-se aberta – pelo menos enquanto o azul petróleo (e o dourado) for novidade. E quando já não for? Viva a arquitectura de interiores!

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