15.02.2021 Interessa-me particularmente a desistência
I
Já não me
interessa particularmente a paranoia. Estou esgotado da peste. O transe
médico global esterilizou a vida (pelo menos a minha). Está um calor excêntrico
para Fevereiro. O Carnaval mascarou o tempo. Hoje é verão na minha aldeia (varanda). Inútil
excedentário, agente confinado da cultura e do lazer (mas não no do livro
de supermercado) aqui me recolho, paranoico, desalentado, melancólico,
desistido. A saúde! Só a saúde, a télé-saúde!
II
“Haveria
sempre tempo para se ouvir semelhante palavra. Amanhã, depois de amanhã… depois
de amanhã… é assim que, de dia para dia, a pequenos passos, vamos deslizando
até à última sílaba do tempo; todos os nossos ontens foram outros tantos
loucos que nos abriram o caminho para a poeira da morte.”
III
Aqui, pelo
centro, lugar do (trabalho) supérfluo, a cidade parece que desistiu de si
própria: ou fui eu? Os clássicos ocupam-me o estudo: as trevas de Macbeth; Jeanne Moreau, ao som de Miles, a percorrer todos os cafés de Paris à procura de Julien; Peter
e Katarina, porque Johan e Marianne são aborrecidos; Toshira Mifune em várias
idades; a Ilíada, por José Pedro Serra, ainda não a Ilíada sozinha; a
escadaria de Einsenstein; Maria Schell em cima da ponte; a coluna de Simão e a festa; entre outras
metades, inícios, imagens, passagens e recortes - fragmentos dos depósitos da cultura, por onde “vamos
deslizando até à última sílaba do tempo”.
IV
Já não me interessa particularmente a paranoia. Sobrevivemos como crianças amestradas! “Amplificadas pelos media, as prescrições, proibições e conselhos que pretendem instalar-nos num mundo seguro criam um ambiente de parque infantil.” A télé-visão mostra picas atrás de picas, ambulâncias, cadáveres-vivos, tubos, batas, algálias, branco, azul, verde, vermelho (mas pouco), focinhos, luvas, mais picas, télé-trabalho, télé-estudo, télé-diversão, mais ecrãs, télé-teatro, télé-masturbação, télé-compras. A télé-existência é uma desistência (cultural).
V
“O vinho da vida esgotou-se e dele nada mais resta, na adega do mundo, do que o depósito, para nos podermos gabar disso.” O que eu gosto, europeu, de me gabar do velho depósito de um vinho mau, que embriagava de futuros passados. O depósito, eis uma definição de cultura, caro Gonçalo.
VI
Semelhante a
qualquer outro privilegiado excedentário, arrasto-me pela casa: da
estante para o sofá, da mesa da escrita para o estendal da roupa, do filme em
meia dúzia de polegadas para a cama. Repeat (after me). A Sílvia ocupa o tempo
a preparar aulas de história de fotografia e a aconchegar, cheia de esperanças, a terra nos
vasos da nossa horta da aldeia do quarto andar (são as crises das meias-idades ou os
benefícios da propriedade, dizem). Quando isto acabar! Ai quando isto acabar! Primeiro temos de de definir isto, depois, definir acabar. Definições: algo
para fazer depois do jantar. Hoje? Caldeirada de peixe ou alheira e brócolos. O que preferes? Faço eu. Escolhas da peste!
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