02.03.2021 Interessa-me particularmente a sedução digital (parte 2)

 


I

Há uma interessante pergunta-resposta do diálogo humorístico do nosso cancioneiro nacional que descreve uma breve conversa de um velho casal: “Querido, já não me procuras, pergunta ela, pesarosa pela ausência de desejo do marido. O esposo, sem grande entusiamo, refuta: “Tu também já não te escondes”. 
Como manter o desejo quando já se viu tudo? Ou ainda: como nos deixarmos seduzir pelo Plano de Recuperação e Resiliência quando afinal já se sabe responder à pergunta: e serve para quê?

II

38% do Plano de Recuperação e Resiliência estão franca ou enviesadamente ligados à Transição Digital. Ora, se afinal às empresas (portuguesas) é pedido que transitem, que mudem do lugar de onde estavam para o lugar do digital, estamos então diante de uma contradição particularmente interessante. Usamos o dicionário? É sempre elegante e torna-nos o discurso mais erudito!
Recuperarrecuperare, é voltar à posse de, reaver o perdido. Por sua vez, Resiliênciaresilire, é saltar para trás. Já Transitar é fazer caminho, percorrer, mas também mudar (de lugar, de estado, de condição). E Digital? Vem daquela modernaça ideia de que o caminho se faz sempre para a frente, nem que seja em abono da mais primitiva sobrevivência no mundo do tecno-feudalismo.  Noticiava ontem o Expresso que “73% dos empresários portugueses estão sem estratégia para o digital”.

III

Não deixa de ser bela a ideia de um plano para resistir através do progresso, ainda que para o caso, se perceba que nasce de um acaso oportunista e a concepção virginal de progresso enquanto aperfeiçoamento progressivo é coisa que ficou em outros séculos. Entre bazucas, fisgas e vitaminas, o que nos calha em sorte para a próxima década? Digitalização das distâncias, dos contactos, das escolhas, dos sentires: um sentir digital e um seduzir digital.

IV

Continuamos no dicionário? Empreender, do latim imprehendere é apreender, agarrar, tomar, segurar, prender (ou ainda surpreender). Se um empreendedor deve ser activo, tal não implica que se agarre sempre ao caminho, pode escolher canalizar a sua (surpreendente) acção na segurança de uma ideia - que é como quem diz, um qualquer momento da História.

V

“Neste ano de reclusão pela peste, (ainda) não me consegui actualizar. À sedução táctil, dos olhares, com pausas e incómodos, não consegui contrapor a sua variante digitalComo seduzir em tempos de ecrã?“ Talvez os 38% do Plano me conseguissem ensinar a actualizar, pena que os Planos se fazem com outros propósitos e em-antes servem apenas para continuar (em prol do progresso) a revitalizar o mesmo e promiscuo esquema circular público-privado das afinidades. Veremos! Ainda que já tenhamos visto tudo.

VI

E de resto? Faz um ano que isto começou. Pelos jornais sucedem-se infinitas listas de efemérides: o primeiro caso; o primeiro morto; o primeiro curado; o primeiro arco-íris; o primeiro paranoico; o primeiro negacionista; o primeiro picado – só o primeiro equilibrado ninguém encontrou. Também ninguém procurou!

VII

Plano de Resistência para a próxima década? Segurar uma ideia, enquanto ela não vai indo, digitalmente, para o galheiro. Galheiro: Fogueira de galhos ou designação extensiva aos veados de chifres muito desenvolvidos, in Dicionário da Língua Portuguesa (1987) - 6a Edição corrigida e aumentada - Lisboa, Porto Editora. 
Que bem que cheiram as folhas empoeiradas deste velho, descolorado e desajeitado dicionário. Nem por acaso: a perda do olfato (e do tacto) é um dos sintomas desta peste.

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