04.03.2021 Interessa-me particularmente alguma utopia V

 


I

Como bom contribuinte (em agonia) que sou - não apenas por obrigação, mas por ideologia - tenho beneficiado de uma parca subvenção, que tem como concepção: cobrir a minha medonha quebra de facturação em tempos de peste. Pelos meus serviços ao capitalismo tenho sido agraciado com umas migalhas, que em alguns momentos e por vários motivos, o Estado tem entendido que mereço. É suficiente? Claro que não – os mais elaborados contorcionismos da poupança são urgentes para tapar os buracos de um excessivo peso fixo profissional. Estou longe de ser um dos Burgueses do Teletrabalho da Susana Peralta, mas escuso-me a queixas públicas, que não deixo extravasar para além de uns lamentos embriagados às poucas mesas nocturnas legais (mas pouco éticas, em alguns círculos) que frequentei nestes doze últimos meses.

II

Este Confinamento da Cultura e do Lazer promete arrastar-se intermitentemente entre vagas de calor e humidade. Tão cedo, as picas – enquanto ilustração da notícia - não permitirão desmascarar e aproximar os saudosos foliões da flânerie social. Há toda uma economia (é disso que se gosta que falemos) a deslizar numa sorte escorregadia. Um ano depois e sem fim à vista para toda uma grande classe que, por afinidades conceptuais, pode ir juntado metiers aos Confinados da Cultura e do Lazer, o que nos resta? 
Podemos voltar a falar do Rendimento Básico Incondicional? Se a guerra, a fome ou a desigualdade nunca foram densos motivos para se falar do RBI, que tal a peste? É que já perdemos doze meses.

III

Como bom contribuinte em agonia que sou, tenho tido a simbólica experiência de um desvalido e ineficaz simulacro de RBI, que chega sempre tarde e soluçado. Tenho eu e os outros enrascados bons-contribuintes e os ardilosos empresários capazes de submeter o formulário certo debaixo da mesa. Nós e os pobres, os muito pobres e os incapazes. 
E quem tem ficado de fora? Toda uma massa informe e elástica de artistas formais e obreiros informais a operar nas franjas de um sistema incapaz de reconhecer que o batimento do coração não é a única condição do estar-vivo.

IV

Um ano depois, debaixo de uma quase experiência em simulação, sinto-me com mais vontade de repisar as argumentações e as narrativas do Rendimento Básico Incondicional e defendê-lo como uma das boas soluções para sairmos deste vagaroso momento de pausa. E logo agora que já sabemos coisas tão particularmente interessantes como: ao novo-normal não se sucederá o velho-normal; a fraternidade não emergiu dentro do egoísmo; a história de um barco onde todos estávamos distribuídos por igual, era tão mentirosa à partida, quanto à chegada.

V

É bem provável que eu esteja errado, e que os vaticinadores do novo-zero e da inflação andante já conheçam detalhes técnicos que me quero intencionalmente esquecer. Mas é com o Rendimento Básico Incondicional que me quero molhar. É o Rendimento Básico Incondicional a luta que quero perder. Regressamos ao tema?

VI

“You have to be on the other side or you don´t feel like the smartest guy in the room. All you are, me dear, is a contrarian”. Interessa-me particularmente o Brian Griffin.


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