06.03.2021 Interessa-me particularmente o quotidiano I



I

Hoje é o dia 50 daquilo que chamei o Confinamento da Cultura e do Lazer. Amanhã, acho que vou ao Teatro. Por 2€, espera-me Godot no TNSJ. Talvez vista uma camisa lavada. A Sílvia talvez se maquilhe. Como é às 19h e pensámos em fazer Polvo à Algarvia, vamos deixar previamente os ingredientes inertes e desalinhados na pequena mesa de apoio, não vá encontrarmos alguém conhecido à saída, que nos atrase o banquete para dois. Poderá ser longo o caminho da sala para a cozinha!  Andamos há um ano nisto - e a tentar evitar simulações de Cultura. Mas amanhã não, amanhã vou ao Teatro – se é que se pode chamar Teatro a este disfarce virtual para tempos de peste.

II

Ontem, no dia 49, algumas bandeiras Comunistas foram retiradas da Avenida dos Aliados, motivo: a manifestação dos “a pão e água” – um conjunto de maus-contribuintes, que pelos seus intermitentes préstimos ao capitalismo, apenas receberam uma provocatória gorjeta. Quando decidiram cancelar o Lazer, esqueceram-se que há misters pouco dados a simulacros, que precisam de ser compensados. O Teatro ainda tenta uma télé-acção. Não quero hoje aborrecer os meus valentes leitores com a ladainha de sempre, mas: um Rendimento Básico Incondicional em cada esquina vale por muitas bandeiras de um centenário que não chegou a ser, o que afinal, nunca quis ser.

III

Hoje, no dia 50, fez Sol. A cidade está resignada. Há ainda quem corra na marginal. Correr faz parte do tema: Saúde! Cada vez mais rés-do-chão da cidade estão agora dedicados à saúde: espaços para analises clínicas, dentistas, testes-rápidos à peste, farmácias aparelhos auditivos. Até a loja do Chinês fechou, motivo: um LabMed, que vem mesmo a calhar! Pela televisão, arrastam-se anúncios a seguros de saúde, camas articuladas, aquecedores de joelhosplataformas elevatórias – sim eu paro! eu sei que não vês TV, é coisa de velhos como eu!

IV

Em tempos de paz (os tais normais), um bilhete de Teatro (15€) custa mais do dobro de um mês de streaming infinito (7€).  Já deves ter feito as contas, eu só fiz hoje, porque amanhã vou ao Teatro. Um bilhete para uma peça, em streaming, custa meia garrafa de vinho barato ou um quilo de ameijoa vietnamita (em promoção) para o Polvo de amanhã. Mas o que me interessa particularmente é o verbo: Ir (ao Teatro). Na peste, até os verbos perderam o movimento.

V

Dia 50 do Confinamento da Cultura e do Lazer: de manhã fomos comprar pão (mas já estava fechado); há uma nova série no Filmin com o Romain Duris para depois do jantar; andei toda a semana a tentar convencer a Sílvia a fazer pizza – veremos se cantarei vitória; tentei ler o Malraux na varanda mas estava vento; vim para dentro ler o expresso (um jornal semanal, 1€, custa meio bilhete de Teatro virtual); a Sílvia fez cerâmica e daqui a pouco talvez faça pizza (os mesmos processos manuais); hoje é Sábado, por isso não me lamentei interiormente por estar profissionalmente confinado, empobrecido e desalentado (ao fim de semana permito-me mentir-me); fiz favas para o almoço (mas escolhi mal o chouriço – 2,19€, era ao preço de uma peça em streaming); a Igreja mantém a chamada para a missa às mesmas horas; a Sílvia continua lá fora, na varanda, vou chamá-la. Pode ser que, com sorte, ainda esteja alguém conhecido na esplanada do Java e ficamos a tomar um copo, antes do Teatro. Ai, isso é só amanhã! 

VI

E a sorte? Ás vezes encena-se. Outras vezes, é mesmo sorte!


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