09.03.2021 Interessa-me particularmente a meritocracia (parte um)

 

I

Também eu, em tempos, acreditei na meritocracia. Nascido da classe média universitária em terras do cavaquistão, embriagado pelo exemplo fui acreditando que, ao contrário do crime, o esforço compensava. Eram bons os tempos. A televisão americanizada ainda dominava a narrativa de um mundo em progresso, onde o caminho era sempre para a frente. Em estilo miss mundo, entendíamos que a paz e a fome podiam ser civilizadas através da educação e dos bons costumes renovados pela democracia. Mas os anos 90, soubemos depois, já não permitiram cumprir a tão bem ilustrada ideia do elevador social. Afinal, era outra-vez o crime que compensava.

II

Excepções à regra tornaram-se ícone. De vez em quando, um self-made man (normalmente um homem) aparecia qual cliché do nada-ao-topo para nos mostrar que a custo, o mérito (a par do crime) seria compensado. Demorou-se até se perceber. Culpou-se primeiro a radicalização religiosa de barbas longas, depois a alta finança narcisista, por fim um furão-texugo (soube-se hoje que talvez a dupla morcego/pangolim seja absolvida). Mas a culpa que, como dizem as boas línguas, aprecia o seu celibato, já vinha de trás: dos confins da civilização. Nunca poderá haver afinal, tal coisa como o mérito.

III

Verifico uma outra coisa neste mundo. Não são os mais rápidos que ganham a corrida nem os mais fortes os que ganham a guerra; não são os sábios os que têm pão nem os entendidos os que têm riqueza; nem os instruídos são os mais estimados. Tudo vai da sorte que eles têm.” (Qohelet, 9:11)

IV

Por cá, temos assistido recentemente a um lento cavalgar de uma renovação em marcha ao credo meritocrático. Nascidos, como eu, nos restos das utopias do Estado Social, um grupo de fiéis pensam-se aqui caídos, puros e virginais, sem passado, numa desimpedida folha em branco, capazes de edificar um futuro talhado pela crença única na virtude do vencedor. Poucas linhas nos restam para a argumentação - ou não me interessasse a mim, particularmente, por método, nunca passar da folha e meia – mas estes nossos camaradas, iludidos por uma justiça de mercado, ungidos de libertinismo egocêntrico e prontos a coçar as costas do outro, desde que, claro! o outro também coce as nossas, não são afinal nossos inimigos, mas nossos aliados. Ora aqui está uma surpresa! Lá iremos numa próxima página e meia, que esta já vai longa.

V

Pena que, apesar da ilustre utopia, os novos meritocratas, arautos da vantagem virtuosa, viajam (e coçam) ainda às costas da velha e desigual tradição das origens, dos poderes e dos hábitos. Mas, curiosamente, fazem-no através de uma fresca e arguta comunicação de ideologia vaguardista que, de forma programada ou não, apenas se mantém propor, as costumeiras eternas desigualdades.

VI

Claro que tudo vai da vida que se leva e da sorte que se conseguiu. Da minha parte, deixei-me de meritocracias num longo processo de percepção que o nosso esforço (e a nossa vontade) por mais virtuoso que se apresentasse ia irremediavelmente sempre bater à mesma e constante barreira. Mas isso foi a sorte. Há maneiras bem mais desumanas de se descobrir os desencantos do mundo. A sorte fez-me nascer baixo (mas perfeitinho), europeu, de classe média, nas ilusões de uma democracia social onde a frequência da biblioteca detinha o QRcode certo para a livre passagem do sucesso. Já outros, não se podem armar de tanta sorte. E outros ainda, que superarando a sua sorte, são agora reaproveitados como ícones para a meritocracia, mantendo viva a esperança: o esforço (de quando-em-quando, com estrelinha, padrinhos e coçadores de costas, até) compensa. Eis o mérito.

VII

Ou então os do mérito até estavam certos. A educação é tudo. Só os objectivos (e as definições de vitória) é que mudaram, ao sabor da sorte.


Comentários

Postagens mais visitadas