15.03.2021 Interessa-me particularmente a meritocracia (parte dois)
I
Meghan Markle não
é uma aristocrata, mas uma meritocrata. Por sua conta e risco (deles), entrou num conto
de fadas de segunda categoria sem saber ao que ia: afinal, esqueceu-se de
googlar - que é como quem diz: sabe pouco de História. Pensava, a jovem Meghan, que podia jogar o jogo do mérito dentro do jogo da classe
e perdeu antes do aquecimento. Na família-real não se pode tentar
ser melhor (quanto mais tentar ser o melhor). O jogo da família-real, desconhecido
de Meghan e dos meritocratas é tão simples como apenas: passar pelas pingas da chuva.
II
Poder-se-á
pensar, em certos círculos, que a meritocracia encontra na monarquia
uma das suas antíteses. De um lado, os que lutam por ser; do outro, os
que por serem, não lutam. Acompanhar as aventuras da famílias-real é
como ver um reality-show popularucho sem a parte da culpa, pois podemos sempre alegar
antigos interesses geo-políticos para legitimar o prazer. Como bem se voltou a
ver, a propósito de uma celebremente mediatizada entrevista, o maior dos objectivos
da monarquia é a mediania. A mediania ou a arte de, discretamente não
demostrar nada. Deve um aristocrata de qualquer família-real ser, no mínimo,
discreto, pois é nesse “nada” que reside a sua grande virtude: não ser
medido – pois no dia em que se perceber a sua falta de qualidades, aptidão
ou competência, talvez aí a monarquia possa cair (de vez). Quando o povo (agora diz-se, contribuintes) conhecer o seu monarca, cairá a monarquia.
III
Um amante do mérito,
por seu lado, gosta da régua. Mede-se e compara-se constantemente ao seu
semelhante (temos dúvidas na semelhança). Promove a competição e o jogo
que aceita por vezes poder ganhar, por vezes, poder perder. O meritocrata, no
seu desequilíbrio, não distingue a vitória, mas em sentido contrário (porque só
um, habitualmente, vence), constrói uma turba de derrotados, párias
sociais da maior incompetência humana que por sua culpa, sua grande (e indivisível)
culpa, são os incapazes defeituosos de uma sociedade que se mede (apenas) pelo
sucesso. Na meritocracia há mais vencidos que campeões.
IV
E é por isso que
- por uma vez, em tempos tão acesos - a questão racial tem de ser secundarizada. As origens de Meghan
estão longe de ser o problema, pelo que o infeliz incidente da eventual cor da
pele da criança não é afinal mais do que um mero fait-diver dentro da big-picture
(e assim com francesismos e inglesismos, rebentamos de uma assentada com dois lugares-comum da escrita ibérica). O que interessa particularmente é o privilégio de
uma classe, ungida por Deus, na nobre divisa da superioridade de sangue.
V
Quem ontem, a
altas horas da noite, perdeu tempo (como eu) a tentar indignar-se com as dores do
jovem e distinto (e belo) casal e elegeu o tema racial e o suicídio, foi sorrateiramente
orientado pela artística montagem mediática. Se há racismo dentro de um
sistema classista? Sempre houve e não é uma entrevista sediada nas colinas
de Los Angeles que o descobriu: é uma evidência intrínseca ao próprio
conceito monárquico, que Meghan se esqueceu de estudar.
VI
Meghan, a meritocrata,
que tentou jogar um outro jogo e perdeu, procura agora, no seu território correr
atras do prejuízo. Para já está a conseguir, com as armas da moda: e
isso é mérito! (era uma pergunta) Pegar no seu privilégio natural, juntar-lhe o privilégio
artificial do marido e criar toda um novo layer na discussão está apenas ao dispor de quem já começou no patim de descanso de uma curta escada.
VII
O que me interessa particularmente em toda a brincadeira é o que fica de fora. Entre os que lutam por ser e os que não lutam porque já são, há todo um terreno de télé-espectadores de reality-shows sedentos de perpetuar as eternas desigualdades a troco de: entretenimento. E isso, as famílias-reais têm sabido, como ninguém, fazer tão bem. Que jogo joga afinal Meghan? Ambos. E daí que a meritocracia começa sempre a meio da escada.
VIII
Viva a República!
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