18.03.2021 Interessa-me particularmente o semáforo
I
Por esta altura
do ano, cada dia é uma efeméride. Faz um ano: “o primeiro caso;
o primeiro morto; o primeiro curado; o primeiro arco-íris; o primeiro
paranoico; o primeiro negacionista; o primeiro picado – só o primeiro
equilibrado ninguém encontrou. Também ninguém procurou!”. Por cá,
faz hoje um ano que foi decretado o primeiro Estado de Emergência. Já
podemos voltar a falar da peste? A
cada momento o seu assunto (a sua sensibilidade).
II
Ontem, perto da
Estação de São Bento, por volta das onze horas da manhã, um polícia conduzia
um meliante a uma boca-de-lobo, segurando-o virilmente por um braço, algures
entre o estilo paternalista e o cumprimento acrítico de uma norma na qual não
se revia. Uma boca-de-lobo é um daqueles buracos no encontro do passeio com a estrada, para onde vão as
águas-pluviais (não vá isto ser terminologia técnica da poesia) e o jovem,
ligeiramente alcoolizado, obrigou-se por obra da Lei a derramar todo o conteúdo
de uma litrosa de cerveja no civilizado buraco (o escoamento, enquanto
processo civilizador). Posteriormente, o pequeno delinquente foi ainda encaminhado
ao eco-ponto (esta parte interessou-me particularmente). O resto da narrativa,
deixo à nossa imaginação colectiva - não fiquei para ver. Qual é o crime que
acompanha o bêbado matinal? Desconheço. Mas nos dias que correm, não andará longe de um pomposo: atentado
à saúde pública.
III
Para onde nos continuará a levar este transe colectivo movido pela saúde? Precisamos sempre de o repetir: o bater do coração não é a única condição daquele que está vivo. E o hábito? O hábito é uma condição do vivo: eis um problema. A Carmo Afonso, a nossa bússola dos tempos de pandemia, escreveu esta semana sobre o hábito. O que me podia acanhar na repetição, convoca-me afinal a arrogância de a continuar. É que, enfim, neste momento de celebração, não há nada de mais particularmente interessante sobre o que escrever, do que o hábito.
IV
O Ema (2019)
do Pablo Larraín é um filme desconcertante. Interessam-me os trailers que
mostrando tudo, não mostram nada. O semáforo a arder! “Ema é o retrato de
uma jovem em chamas” diz na sinopse. Interessam-me sinopses que não
dizendo nada, já dizem tudo. O semáforo a arder é uma imagem
particularmente inquietante para o dia da efeméride do Estado de Emergência. Sempre gostei de semáforos: aquele elemento
que distribui, mais-ou-menos democraticamente a passagem, permitindo tempos
maiores a ruas mais movimentadas e pequeno botões para o transeunte esporádico
accionar (que é como quem diz: também estou aqui). Mas, por vezes, em certos
dias, quando não aparecem carros da direita; quando não se mostram carros da esquerda,
talvez, num momento de soberba individual, o peão possa passar no vermelho. Eis
a civilização: a pequena liberdade de saber prevaricar diante das cores.
V
Ema, a do filme,
diz-se pelas melhores sinopses que está em chamas. Um ano depois, se não estás
em chamas como a Ema, é porque te habituaste. E o hábito, como bem sabemos, entre
outras maravilhas da metáfora, tanto é a “modalidade motriz da memória
que se manifesta na forma de actividades facilitadas pela sua repetição”
como a “roupagem de um membro de uma comunidade (religiosa)” –
então, uma espécie de verbalização da memória comum.
VI
A peste,
a criar memórias (comuns) há um ano! Amanhã, se nos correr bem a noite, talvez possamos discutir como queimar o semáforo. Hoje, ficamos só à espera do verde, pode ser?
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