19.03.2021 Interessa-me particularmente a efeméride



I

“Então. Hoje parece que tenho que te ligar mais cedo? Pronto, então daqui a bocado ligo-te outra vez, à hora do costume. Até logo”. O dia do Pai é daquelas efemérides que me obriga, por uma qualquer ficção social, a antecipar o meu telefonema diário em meia dúzia de horas. Nem eu gosto, nem ele gosta, mas enfim, faz-se o jeito a bem dos equilíbrios da civilização. Daqui a bocado ligo-lhe outra vez, à hora quotidiana estipulada e fala-se do habitual e das excepções, das notícias do dia, da ondulação da linha da peste e de uma qualquer efeméride própria do dia, como ser dia do Pai e ter-lhe telefonado, fora de horas.

II

Quando lhe telefono fora de horas é porque deu merda e quando dá merda, o que eu faço é ligar-lhe. Por isso nunca lhe telefono fora de horas, excepto no dia do Pai. Nos outros dias, mesmo nos que deram merda, é sempre preciso atender com um prosaico: Não é nada, mas que é como quem diz: Deu merda, mas não é grave (ainda), não nos preocupemos já, porque és perfeitamente capaz de resolver a merda que eu fiz, ou melhor ainda, ensinas-me a resolver as minhas próprias merdas.”

III

Não faço a menor ideia sobre o que é ser bom Pai ou bom Filho, mas desconfio que tenha a ver com telefonemas quando dá merda. Por agora, ainda sou eu, a meio da idade que faço os telefonemas. Daqui a uns anos, de acordo com o cronómetro, serei eu a receber os “Não é nada, mas” e farto de saber que aquele "não é nada" é tudo, faço de contas que o nada é mesmo nada e que tudo se resolve a bem dos equilíbrios humanos. Por isso, quando der merda, hei-de estar aqui.

IV

Vá, este texto hoje fica mais curto para evitar constrangimentos no telefonema de logo à tarde. Senão, ainda me ligas mais cedo a dizer “Não é nada, mas”.

VI

(nota: para o dia da Mãe, a ver se me lembro de não escrever merda)



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