24.03.2021 Interessa-me particularmente a sedução digital (parte 3)

 

I

Um comunista, um anarco-sindicalista e um socialista entram num bar para criarem um movimento progressista, que é afinal social-democrata e serve um único propósito: salvar a economia de mercado - eis uma definição para o que se anda a tentar fazer. Claro que em tempos de peste, um bar é rapidamente substituído por um ecrã reticulado de micro-cabecinhas silenciosas a escutarem reverentemente a mais ilustre sumidade da sala. Tem sido sempre assim desde o início dos tempos e não consta que a mais evoluída democracia-de-participação consiga deslindar algum artifício mágico para o quebrar. Da minha parte, eu bem tento fascinar-me por movimentos inorgânicos de voluntarismo social, mas os lentos processos da banda-desenhada continuam sem me fascinar. Ainda prefiro o um inconsequente debate de bar, cuja esplanada está quase, quase a abrir.

II

A Feedzai é agora o quarto unicórnio português. Imagino o orgulho tolo e infantil do seu fundador a chegar a casa ao final do dia: meninos, o papá é um unicórnio”. Terá as suas vantagens! Uma tal de Aileen Lee, teve em 2013, a luminosa ideia de ilustrar a junção da tecnologia-leve e da pesada-finança debaixo das asas de um cavalo alado. Não! Afinal um unicórnio nem asas tem. E o que faz a Feedzai para valer os seus 1300 milhões de euros? “Ajuda outras empresas a gerir e a prevenir o risco de fraude ou crime associado a transacções online, designadamente pagamentos. Para tal recorre à inteligência artificial e ao machine-learning.”

III

Conta-se que umas das artimanhas mais usadas deste unicórnio lusitano é detectar “comportamento atípico” no consumo. Ou seja, quando o Senhor Herbert, a meio da sua idade, se decide finalmente pela compra de um Fedora, porque entende que, afinal, vai bem com a sua mudança de personalidade, eis que o unicórnio aparece: “Senhor Herbert, tem a certeza que quer comprar um chapéu? A sua mulher sabe? A amante aprova? E os filhos permitirão que o senhor os leve à escola nessa ilustre figura? Deixe-se disso! Vamos ficar-nos pelas compras do costume, para não aborrecermos os algoritmos e os unicórnios, sim?”

IV

Quando reabrirem os bares, a lojas, os teatros e os antiquários, o Senhor Herbert combinou uma conspiração contra o algoritmo e o unicórnio. E como? A resposta descodifica-se na frase anterior. O Senhor Herbert vai fazer de contas que ainda vive no sec. XIX. A caminho do Teatro, na montra de uma pequena loja de bairro, o Senhor Herbert sobressalta-se com uma descoberta acidental. Entra, conversa brevemente com o curador de chapelaria, experimenta um Pork Pie e apaixona-se pelo seu novo eu. Afinal o algoritmo tinha razão: um Fedora é tão sec. XX. O que interessa particularmente ao Senhor Herbert é a imagem que o espelho lhe devolve. Uma versão actualizada daquela fotografia antiga de Frank Lloyd Wright, enveredando um Pork Pie branco, que acompanha a sua galeria de referências desde os tempos em que recortava almanaques.

V

Fedora, conhecido pela sua versão Fedora Core antes da versão 7, é afinal um sistema operacional Linux e um subproduto de uma tal Red Hat Software
Ou seja, já não há volta a dar! 
Se um unicórnio já não é um cavalo e um Fedora já não é um chapéu, então parece-nos que podemos facilmente consentir que um partido de esquerda já não é progressista, mas sim, reaccionário.

VI

Se ao menos os bares estivessem abertos, podíamos brincar ao século dezanove.







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