29.03.2021 Interessa-me particularmente o hábito (parte 2)
I
Como dizia o
jovem Werther: “o homem é de tal modo feito que se lhe pode fazer aceitar
as coisas mais fantásticas e inverosímeis; e, uma vez aceite, ai de quem
lhas alterar ou pretender apagar do espírito!” Por mais insólito que se
me apresente, não me consigo rir da história do homem que foi multado enquanto
comia uma sandes no carro na sua pausa de almoço. Caricatura grotesca dos
tempos da peste. Refugiado na sua propriedade móvel, esganado de fome, o desavisado
pervertido não resistiu a encostar à berma e deleitar-se com um
pão com queijo entre dois trabalhos. Culpar a desumanidade, a intransigência e
a crueza do agente da autoridade que o multou é não nos querer-mos encontrar com
o verdadeiro responsável: nós, que nos permitimos às coisas mais fantásticas
e inverosímeis e as aceitamos, com uma gargalhada.
II
A peste está a
acabar. A peste está a começar. Uma dicotomia de contrários. Afinal, a peste
era mesmo o quê? Tudo depende da forma como olhas para o copo, não é? Para a
semana tiram-me do meu involuntário retiro. Não quero ir. Habituei-me.
Gosto desta mesa, destes livros, de empurrar todos os pequenos afazeres para depois
do almoço e encurta-los sob a falsa capa da sua impraticabilidade
momentânea. Não quero ir. Habituei-me. Quero ficar por aqui a olhar as entranhas
da cidade pela janela, entre filmes em catorze polegadas e idas regulares ao vidrão
ali da viela. Não quero ir. Habituei-me. Agora é que a peste vai mesmo começar.
Vamos conhecer os novos hábitos. Vamos procurar os hábitos antigos: que
hábitos sobreviveram à peste? Um hábito procura-se. Um hábito. Já te habituaste
à peste?
III
Qual é a melhor
maneira de te explicar isto? Gosto de passear pelas ruas da cidade com a Sílvia.
Simples, não é? Moras na cidade, sais de casa e pronto. Já te habituaste à
peste? Sais de casa, mascarado. E o que é uma cidade? Um quotidiano: um hábito.
Como é que eu te explico isto: costumas olhar para a pessoa de quem gostas
com máscara? Sim, eu sei que és particularmente impassível aos meus
argumentos, que, diga-se, são também eles, particularmente íntimos: gosto de
passear pelas ruas com a Sílvia desmascarada (e pouco mais). Em que cidade? Em
todas as que conhecemos. Em todas as que não conhecemos. Há ano e pouco que não
conheço nenhuma cidade. Muito menos esta, carente do seu quotidiano – com novo hábito.
IV
O Senhor Álvaro
não pode comer no carro, nem na borda do passeio. O Senhor Álvaro já se pode
sentar no jardim do Marquês, sozinho, a dar migalhas aos pombos: mas não sorverá
ele próprio as migalhas excedentárias sob risco de cárcere. Há uma nova rádio a
transmitir leituras dos Diários da Peste do Gonçalo M. Tavares desde a
antiga Biblioteca Popular do Jardim do Marquês. Dizem-me que é uma espécie
de podcast. Abortamos o nosso? Ainda vamos a tempo! Ou então, como o jovem
Werther, tentamos aprender o costume de sermos o segundo (pelo menos, durante
algum tempo). O Senhor Álvaro não regressou ao jardim depois da peste. Habituou-se
a outros hábitos! E ai de quem lhos pretenda agora apagar do espírito!
V
Londres registou hoje zero mortos pela peste. Não houve salvas de foguetes, nem confettis às portas dos pubs. Amanhã chegam os novos fatos de astronauta para substituírem as máscaras. Quem os usar - está estudado - fica responsável pelo salvamento de centenas de vidas. Se salva a sua? Bem, isso ainda não sabemos, mas pelo menos, ainda nos permitimos duvidar. O Senhor Álvaro já mandou vir o seu. Tem um padrão de automóveis estilizados. O Senhor Álvaro trabalhou durante anos na Ford, que é como quem diz: uma passagem forçada para a citação abaixo, do famoso capitulo dezasseis, o qual fui brutalmente coagido a ler.
VI
“Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. A nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade. Por isso se torna necessário que eu conserve estes livros fechados no cofre-forte.” É preciso escolher. E depois, é preciso aceitar: mas isso, segundo consta nos livros que já não se lêem: é fácil.
VII
Não quero ir.
Habituei-me. Para a semana lá regresso ao espaço público e a hábitos antigos. O
que é uma cidade? Precisamos de resenhar os quotidianos da cidade. O Senhor
Álvaro sai todos os dias. Na peste aprendeu a andar na rua de óculos de Sol,
mesmo quando troveja. Não leva máscara: ou pelo menos assim o pensa. Habituou-se.
O Senhor Álvaro é velho e viúvo, razões que o levam a sentir-se desmascarado. E
eu a pensar que não voltava a falar disto. Que é que queres? Não me habituo! Não achas bem?
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