10.04.2021 Interessa-me particularmente a pequena politiquice
I
Ontem foi um dia particularmente importante para a memória colectiva do nosso país. Desprovida de qualquer conhecimento singular que permita interpretar o receituário jurídico, para nós, a populaça, fica reservada a percepção de uma musculosa nota de impunidade sobre a classe do poder. Sócrates saiu, aparentemente, vencedor. Se venceu ou não, ou se venceu para já e perderá depois – são apenas nuances assimiladas transviadamente. O que resiste para a populaça é o reforço da suspeita de que este país vive ainda sobre os domínios da corrupção e que os donos-disto-tudo (epíteto cuja origem se perdeu) ficam sempre bem na fotografia. Para os amantes da culpabilização de tal coisa como o sistema, o dia de ontem interessou-lhes particularmente; para os outros, resta-nos o encolher de ombros e a aceitação de que o andamento da tarefa virtuosa da política foi atrasado.
II
Ainda que
prefira explorar as minhas raízes Portuenses e Padernenses, quis a sorte
que nascesse Beirão. Esta semana morreu o meu mais ilustre conterrâneo.
Jorge Coelho ficou surpreendentemente lembrado por se ter responsabilizado politicamente
por um lamentável episódio sobre o qual não tinha qualquer responsabilidade: também
ficou bem na fotografia. Jorge Coelho foi o estratega de um partido desprovido
de ideologia, o homem do backstage que tudo geria sem beleza, mas
com muito prazer. Dos tempos de Coelho no poder, salva-se o Rendimento Mínimo Garantido,
um eficaz controlador do avanço da pobreza extrema (ou como outros dirão, uma
forma de perpetuar a pobreza).
III
Se o Partido Socialista
de Coelho era um partido com estratégia, mas sem ideologia, o Partido Livre é o
seu oposto. Auto-extinto politicamente no início do ano passado, na sequência de
desarranjos numa táctica pueril de selecção de rostos, ao Livre não faltam ideias,
causas e vontade. Mas falta estratégia. E liderança. O Livre foi o
partido mais interessante que apareceu na política nacional desde 1999 (onde
quatro desengravatados da esquerda modernaça e urbana, herdeira do trotskismo, conquistaram
os media). Um Coelho em cada partido: eis um slogan. Mas se havia algo para a qual o meu compatrício
não revelou particular competência, foi na escolha das lideranças. Um traço de caracter
do espectro político nacional que já remonta a 1985. Nestas eleições autárquicas arriscamo-nos a encontrar o Livre como um pequeno braço ideológico elitista e viajado dentro do PS: a estratégia e a ideia devem aprender a cooperar, desde que tenham um líder.
IV
Ora, como bem
sabemos, a biologia é inimiga das esquerdas. Se a biologia nos diz que
procuramos naturalmente uma hierarquia, a ideologia contrapõe tentando
forjar equilíbrios na cooperação. Por estes dias tem-se celebrizado um
segmento documental do telejornal da SIC onde, enviesadamente, se acaba por dar
alento ao credo do homem (e da mulher) providencial. A “Grande ilusão” tem por
objectivo silencioso fornecer dados racionais para convocar a repulsa à alt-right.
Não acredito que depois da reportagem, a extrema-direita nacional tenha perdido
um único voto, mas tenho a certeza que ganhou vários. O allure do
líder forte é biológico como nos diz um dos ideólogos involuntários da nova-direita,
o famoso Jordan Peterson. Os media têm de encontrar novas estratégias para
derrubar o inimigo comum das esquerdas, dos centros e das direitas.
V
Interessa-me
particularmente a pequena politiquice, mas a grande politiquice também. Mas a
grande dá-se a elaboradas teorias da conspiração (ou pelo menos a isso somos acusados quando
se elabora uma narrativa de conjuntura que convoca a banca, os oligarcas tecnológicos, os
filantropos tecnológicos e a farmácia). Assim, fazemos de conta que a
pequena politiquice importa, mostramos algum domínio na formulação de
referências e mantemos a ficha limpa, movendo-nos pela espuma social, como uma
qualquer boa populaça - estava para nos nomear de cidadãos, mas depois, como mandam as boas práticas da educação puritatana teria de enveredar por:
cidadãs e cidadãos, ou ainda população cidadã. Fica então populaça, sem género,
mas com muita carga história de submissão e desinteresse, da qual,
irremediavelmente, não nos contamos livrar. Um Coelho em cada partido!
VI
E quando aparecer um humano providencial do lado certo do espetro político, nada menos que a cruz, a fogueira ou o copo de cicuta. Mal por mal, mais vale nenhum Sócrates, do que o azar de votarmos no Sócrates errado. Se ao menos ainda lá estivesse o Coelho!


Comentários
Postar um comentário