16.04.2021 Interessa-me particularmente a decadência I
I
Esta semana a civilização foi
surpreendida pela inesperada proposta por parte de algumas Universidades
britânicas da admissão de erros ortográficos na escrita dos seus alunos.
Motivo aparente: a moda da inclusão. Apura-se, contudo, que esta filantrópica acção,
que se alumiava de um egrégio paternalismo em direcção a uma suposta redução
das diferenças entre “as identidades” (agora identidade parece escrever-se no
plural, a bem da mesma inclusão), não é afinal mais do que uma medida
economicista. As ditas universidades estavam a perder clientes. Baixar o nível
pareceu-lhes a proposta mais prática para pagarem os seus juros de dívida.
No catálogo das motivações, escolher entre a condescendência sobre as minorias e
o móbil financeiro é de difícil eleição, mas as tais anglo-academias conseguiram
um cruzamento exemplar. Quem perde? Todos!
II
Quanto erros
ortográficos, tipográficos ou crimes gramaticais foram praticados no ponto
anterior? Não sei. Raramente encontro a disponibilidade (e a vontade) para
me reler e se o fizesse, tenho dúvidas de quantos dos meus escritos teriam
sobrevivido à mais-fina auto-censura. Tal-coisa é diferente de ambição e de estilo
(como por exemplo o uso de três hífens sucessivos onde não são chamados). Se o
estilo até se pode procurar no erro, já a ambição só ambiciona a excelência,
coisa que outrora se encontrava sentada à cabeceira da Universidade (ou a meio
da mesa, para o caso da preferência pela etiqueta francesa). Nietzsche, ao pensar ter morto Deus, aclarou a força na crença de que a Universidade, o Museu, a
Biblioteca (e os Cafés) podiam tomar o lugar da Igreja. Mas como bem-sabemos,
só o capitalismo se veio sentar à direita do Pai.
III
A decadência
implica ir-se, pouco-a-pouco, desmembrando, enfraquecendo e deteriorando uma ideia.
Gosto da ideia de decadência. Decadência é feminino, como civilização.
Fosse masculino e estaria transformado em a-gender, neutro, inclusivo. Hoje leio
uma imagem particularmente interessante: a Europa enquanto “península ocidental
da grande massa asiática”. Gosto desta ideia de sermos uma península da
Ásia. Soa a aceitação da nossa decadência. Aceitamos a Ásia como o
centro de um outro-mundo não greco-romano. A real condição peninsular de
Portugal encontra agora eco na artificial pensinsularidade da Europa.
Somos, afinal, apêndice civilizacional.
IV
Interessa-me
particularmente a decadência, essa anuência resignada de fim de um momento
sublime. Andamos a decair há pouco mais de dois mil anos desde que Sócrates
ou Diógenes (depende do gosto, eu prefiro cínicos!) terá inventado o cosmopolitismo.
Desde então, que o nosso único mister é continuar
(preservar) uma qualquer ideia de cultura que tinha alguma coisa a ver com o
respeito da ortografia. Quando deixamos cair a escrita, deixamos cair o
livro. Mas afinal, o livro já tinha caído, irremediavelmente, algures a meio do
século passado no alcatrão de Wall Street.
V
Os académicos
britânicos sabem bem que escrever é comunicar, ao ponto de quererem alcançar
tal-coisa como uma escrita inclusiva, capaz de atentar às especificidades de um
mundo tribal, tão acérrimo zelador das suas identidades que se torna incapaz de
se relacionar com o esqueleto a seu lado. Vivemos tempos particularmente
desinteressantes, onde cada um pouco mais consegue falar do que consigo mesmo! Como era mesmo aquela ideia grega? O cosmos e a pólis?
VI
Continuo sem
saber quantos erros ortográficos, tipográficos ou delitos gramaticais terei cometido
em página e meia. Interessa-me particularmente a decadência, principalmente a da
Universidade, (da Escola), do Museu, da Biblioteca e dos Cafés. Ainda assim, resisto,
resignado aqui nesta península asiática no conservo de uma qualquer postiça ideia de
cultura.


Comentários
Postar um comentário