19.04.2021 Interessa-me particularmente a televisão
I
Hoje, a rede social assinala-me a efeméride: faz 3 anos da última vez que apareci na televisão, que é como quem diz: há 3 anos que não faço nada de particularmente interessante.
Para um introvertido que cresce na beira, nos
anos 90, a televisão ocupava (como ainda hoje) um lugar primeiro na capacidade
de percepcionar o mundo. Era por ali que o mundo entrava ou ainda, era ali
que o mundo estava todo.
Por isso, quando a partir de 2013 me aventurei nas
lides de um espaço social, sem nunca o procurar, esperando que “o bem que
por acerto ou sorte vinha”, aguardei que a televisão me procurasse. Fui
encontrado por duas vezes, a Sílvia um pouco mais.
A última vez foi esta. Há
que procurar novos motivos para ser encontrado.
“Se me perguntares como é a gente daqui, responder-te-ei: como em toda a parte. A espécie humana é de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, se algumas horas lhe ficam, horas tão preciosas, são-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar. Triste destino o da humanidade!”
No tempo do jovem Werther, pelo menos, não havia televisão. Entretinham-se as gentes com outros passa-tempos.
III
O Pedro Mexia lembrou-nos recentemente uma ideia jocosa particularmente interessante: “a televisão, como a bebida, só a partir de determinada hora”, justificando a sua ignorância face à programação do daytime. Mas recusar conhecer a programação diurna da televisão é como resistir aos prazeres do álcool a horas presunçosamente desaconselháveis: há todo um espectro de conhecimento por explorar, embriagado ou não.
Do meu círculo etário alargado, sou ainda o
último dos que vê televisão. De todos os lados aceito serenamente cíclicos
ataques ao meu prazer pouco culpado. O problema é o verbo (ver): eu não vejo televisão, eu limito-me a saber o que dá. A solução é o verbo (olhar): eu olho televisão.
IV
No clube dos passa-tempos (a passagem das horas pesadas e preciosas!) hoje a televisão mantém ainda o seu lugar maldito. No entanto, simulacros de televisão fragmentada persistem maquilhados pelas outras redes de difusão.
A televisão enquanto
elemento unitário e agregador de conteúdos foi há muito fragmentada e
destituída - em directo ou diferido - pelas várias plataformas sociais e de
streaming. Há uma certa soberba iludida de quem se acha pertencer a um patamar alternativo à televisão enquanto assiste ao streaming. Ver Netflix é como rezar o terço,
repetido, decorado e controlado pelas boas-regras do passa-tempo. Ver televisão é ainda como as pequenas conversas
na escadaria no final da missa, que definem o andamento da paróquia.
V
Quando o algoritmo que nos deveria mostrar o mundo, apenas nos mostra o nosso mundo, é particularmente reconfortante contar com a tradicional televisão onde conhecemos e aceitamos a transparência das dinâmicas do zapping. Canal atrás de canal, sem hierarquia de preferências, nenhum é sonegado por histórico de desinteresse.
A luta por uma melhor televisão: eis um entretenimento para todo uma
geração agarrada ao missal do streaming - ou, a luta pela cultura.



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