27.04.2021 Interessa-me particularmente (a autoridade e) os dois
I
Sexta-feira à noite, por volta das dez, uma pequena rusga policial a veículos motorizados foi montada na rua Júlio Dinis. Na curta fila de quatro carros apanhados pela aleatoriedade da curadoria da guarda, um jovem casal de namorados, que por poucos meses não necessitaria de controlo parental para se passear, aguardava impacientemente vez de prestar justificações sobre a sua liberdade. Eram o terceiro carro alinhado em espera e já se encontravam em sentido: devidamente mascarados de azul bebé descartável. Consigo imaginar o desespero. Carlos, chamemos-lhe assim, que teria pegado pela primeira vez no carro de uma tia-avó para impressionar a sua apaixonada, tentava mascarar (agora sim) o seu nervosismo com pequenas graçolas relevadoras da sua condição. Não só seria a primeira vez que conduzia a sua amada, como inauguraria uma vida de confronto policial, que é como quem diz: fazer-se de morto, tentado esquivar-se a perguntas difíceis sobre legislação, que a sua jovialidade ainda não permitia dominar. Maria Eduarda, chamemos-lhe assim, gostava realmente de Carlos. Fosse outra e não alinharia na fantochada do pano sobre o culpado nariz, dentro de um automóvel de janelas fechadas, a setenta metros do corpo da guarda. Carlos e Maria Eduarda estavam realmente apavorados (e apaixonados). Não compreendiam porque foram catados, numa sexta-feira à noite, onde o jantar social era permitido, a bem do capitalismo de peste.
II
Não percebiam eles,
nem eu, que quis em sorte que passasse no sentido contrário, no mesmo dia, na
mesma hora. O excesso de zelo continua a conduzir-se sobre as boas-intensões
da autoridade. Carlos e Maria Eduarda, afinal cidadãos-modelo, foram
caçados na diligência esforçada de um estado-de-sítio que há um ano e tal se
limita a correr atrás, copiando estratégias medievais infrutíferas na tentativa
de manipulação dos dados naturais. Mas, em boa verdade, talvez nessa noite
este inesperado episódio tenha servido para unir a ainda tímida relação de
Carlos e Maria Eduarda. Numa segunda oportunidade, quem sabe se o jovem casal
já não manterá a cara ao natural, exposta aos ares-condicionados da viatura e
quando a lâmina de vidro descer ao lado da autoridade, se limitam orgulhosamente
a dizer: Senhor Agente, nós estamos a cumprir as leis da saúde, da economia
e da paixão, e o Senhor Agente, que leis deseja cumprir esta noite?
III
A única vez que
soprei no balão foi em tempos anteriores a qualquer crise e a qualquer peste, tratando-se
de uma corriqueira operação de rotina à cata do álcool à entrada da Ponte Dom
Luiz. Lembro-me da minha tão inocente como arriscada investida: Senhor
Agente, posso levar o tubinho transparente como recordação? O fardado
riu-se e mandou-me avançar. Confesso que a minha boutade em nada
contribuiu para apimentar a noite. Tê-la-ei simplesmente levado a casa, do outro lado da
ponte. Mas também em nada prejudicou. Daqui a uns dias, eu e a Sílvia fazemos catorze
anos desde a última vez que começámos a contar. Talvez esta pequena memória seja ainda
anterior ao dia que escolhemos para empreender uma contagem. Nota para os próximos
tempos: procurar operações stop anti-peste e ensaiar novas respostas de desafio
inconsequente à autoridade.
IV
Ontem não
houve mortos pela peste em Portugal. Nos lares, não há mortos pela peste há
duas semanas. Hoje o Comandante Supremo das Forças Armadas anunciará ao país que sairemos do Estado
de Emergência e alcançaremos o tão desejado Estado de Calamidade (já não me lembrava da
invertida hierarquia do estado-a-que-chegámos). Afinal, vamos poder tirar as
máscaras mais cedo do que pensávamos. É pelo-menos uma fé que por vezes se me
dá.
V
Espero voltar a
ver Carlos e Maria Eduarda juntos por aí. Se o namoro deles sobreviver aos controlos
transfronteiriços dos tempos da saúde acima-de-tudo, certamente sobreviverá a
qualquer inevitável domínio imperial nesta pequena península dentro da grande e
decadente península asiática chamada Europa, cheia de apps, câmaras de
vigilância, pontos por bom-consumo e reverência à autoridade. Talvez só
mesmo juntos consigam sobreviver! Interessa-me particularmente os dois.



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