03.05.2021 Interessa-me particularmente (o aggiornamento e/ou) a decadência II

 

 

I

Há dez anos andava obstinado pela novidade. Era o tempo de passar tempo extasiado pelos diplays do quiosque à procura da mais fresca publicação de arquitectura, interiores ou lifestyle. Os filmes (sempre da europa central) passavam-me do prazo de validade se tivessem estriado em sala há mais de três anos. As galerias de arte contemporâneas eram o meu espaço primaz de desejo. A autoria teria de ser minha contemporânea ou eu não seria um homem do meu tempo. Na sequência, co-fundei uma loja de design português de autor, onde na sua idiossincrasia, podia tocar a novidade em pré-produção, antes de partir para o forno. Como se estes escritos não servissem outro propósito senão a confissão, confesso: hoje, já pouco disto me interessa particularmente

II

Nos anos sessenta, década de tudo, o Concílio Vaticano II iluminou-nos com a ideia do aggiornamento: era necessária uma actualização do cânone. Motivo: sobrevivência do processo de decadência. O Ocidente, em declínio há dois mil anos, precisava de decair mais lentamente. Eis uma definição de aggiornamento: a demora na decadência - algo que estou particularmente a precisar. Ano e meio de peste desactualizou-me.Tens de te reinventar”, ouve-se como mantra pós-moderno da volatilidade  e da volúpia dos mercados. “Go online or go home”. Prefiro hoje sempre regressar resignado ao tugúrio do filósofo do que embarcar, à vista, pelos caminhos deslumbrados da desumanização do ocidente.

III

Nos meus tempos de novidade, quis ser curador. De quê? De novidades pois claro. Escolher e cuidar: eis a minha definição de curador. Ainda hoje o uso como título profissional naquelas curtas descrições autobiográficas mais aparentadas com anseios, do que equivalentes a episódios vividos. Talvez, há uns anos, quando ainda não estava na moda, eu fui um curador. As modas (tal como as médias e as medianas) tornam particularmente desinteressantes os conceitos. Hoje, um curador confunde-se com um bom-anfitrião, capaz de construir uma valiosa guest-list num rapidíssimo follow-up de emails para uma agradável soirée artística. O curador de século vinte e um passeia-se pelo salão, de copo na mão, sobre a sua rede de contactos, ligando afinidades, projectando e provocando sinergias. Mas brevemente, também o curador será substituído por um eficiente algoritmo.

IV

Escolher e cuidar. Eis o que faço e que ainda me interessa particularmente. Se trabalhasse com o antigo seria um conservador, como trabalho com o novo, e não possuo uma mailing-list, sou um curador falhado, incapaz de me actualizar em tempos cómodos e preguiçosos de peste. Resta-me assim uma qualquer ideia de aggiornamento para me ajudar a decair devagarinho, como quem escorrega lentamente por uma parede para evitar um desnecessário encontro.

V

Há dez anos andava obstinado pela novidade. Hoje o meu capricho é o antigo. Posto de defesa, dir-se-á. Quem não acompanha os tempos, altera o olhar. Ou então é só a habitual puta da idade a encontrar-me desprevenido, aqui jazido numa rua ainda desvitalizada em tempo de peste. Por aqui, ainda não há velho-normal, uma base-comum que potencie lenta progressão. Por aqui, há ainda apenas, sobrevivência em espera.

VI

Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa”, um antigo processo de substituição de humores e temperamentos que me rezava há uns meses ainda funciona? Ora deixa cá ver. Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa. Olha, parece que já estou melhor. Talvez hoje consiga ser curador. Ou arquitecto, ou escritor! Quem sabe! Vou só experimentar mais uma vez. “Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa”…


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