04.05.2021 Interessa-me particularmente o Julião Sarmento
I
O Julião Sarmento morreu hoje.
II
Há uma regra silenciosa, jamais discutida ou verbalizada entre mim e a Sílvia, que impossibilita uma espécie de sobreposição nos nossos gostos, naquela categoria de gostos próximos da obsessão. Porquê? Não faço ideia, mas tem qualquer coisa a ver com propriedade e com aquela possibilidade de debate continuado, próximo da tertúlia boémia, desta feita, em casa.
Por razões naturais fica a Sílvia com direito de preferência sobre toda a Pintura e eu sobre toda a Arquitectura, restando-me entusiasticamente a Escultura para me divertir e a ela, alguns exemplos: toda a música, toda a fotografia e algum cinema (no cinema quebramos a regra). Mesmo dentro das mesmas Artes, tem de haver cedências. Abdico do Impressionismo em troca do Fra Angelico todo e nem ouso tocar no Soulages, que revejo sozinho, às escondidas, como se de um filme porno na adolescência se tratasse.
Mas por vezes há excepções. O Julião Sarmento é uma delas.
III
Ao cimo das escadas que me levam ao quarto de dormir (que é hoje mais quarto de leitura) temos um pequeno desenho despreocupado da Sílvia, feito sobre um estreito cartucho branco da farmácia, previamente escrito com uns apontamentos vagos, onde encontramos uma mulher, sem cabeça, de vestido preto. Sabe-se bem, que não há melhor elogio do que a imitação referenciada, pacificada em reverência ao objecto admirado. Uma brincadeira de café entre duas aulas com uma curadoria insistente, ganha destaques de exposição.
Se o desenho é dela, o lugar desse desenho é meu, e nos próximos
tempos, vamos ter de levar com a recordação do dia de hoje de cada vez que subimos para dormir.
Terá sido em 2012, na inauguração do Noites Brancas - não posso precisar, porque a minha memória puxa-me mais atrás - que no quarto de banho de mármore rosado da Casa de Serralves, abro como habitualmente a porta para o quarto seguinte e dou de caras com a Sofia Aparícia semi-nua em primeiro plano e uma pequena plateia de entusiastas de Julião Sarmento que me olhavam inquisitoriamente por trás. Fechei a porta. Não assistia à performance.
V
Nestas coisas dos direitos de preferência por semelhanças conceptuais e formações iniciáticas, cabe-me em regalia escolher para mim uma pequena série em que Julião Sarmento se detêm nas plantas das casas, entre outras plantas.
VI
O MEC diz que quando morre alguém tem a crónica feita. Tema facilitado para quem escreve todos os dias caro Miguel. Como ainda não me dou a esses caprichos, posso ser escolhido pelos meus temas e esperar pacientemente pela morte.
Tínhamos
planos para hoje à noite. Voltar ao Cinema, quem sabe jantar por aí.
Mudamos os
planos Sílvia? Será que ainda temos por lá gravado aquele filme do Joaquim
Sapinho que nunca acabámos de ver?
O Julião morreu aos setenta e dois. Fisicamente parecia ter quarenta.
No resto não tinha idade.
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