18.05.2021 Interessa-me particularmente A Última Vez

 



 
I

Talvez este não seja um interesse particular. Algures a meio da peste, Rui Resende, o músico (isto porque há vários Ruis dentro do mesmo) pede-me uma letra para uma música. Confesso - e o autor do convite sabia-o bem - sou quase orgulhosamente insensível à música, principalmente se esta tiver uma letra. Mas nesta coisa dos interesses, aquilo que me interessava mesmo, era finalmente, ao fim de 20 anos, eu e o Rui fazermos qualquer coisa juntos
E nasceu A Última Vez.
 
II 

A última vez que tentei escrever um poema
 
A última vez que tentei escrever um poema
os sofredores ainda falavam de
whisky, mulheres e cigarros.
Mas o mundo mudou
e os poemas
talvez.
 
Ficciona-se um cenário e
prontifica-se à dor:
esta noite, abandonaste-me.
Tens um poema.
 
A última vez que tentei escrever um poema
estava a sofrer
e não precisava de fábulas e referenciais.
 
Hoje, cria-se:
amanhã, vou-te procurar.
Tens outro poema.
 
A última vez que tentei escrever um poema
onde se mente,
havia noite e cidades
onde hoje há sentimentos
dentro do bolso, atrás do vidro.
 
Afinal, a última vez que tentei escrever um poema
ainda era igual à última vez que tentei escrever um poema.
 
III

A última vez que ouvi A Última Vez foi num live de Youtube, onde os Mir i Rui apresentavam oficialmente o seu primeiro álbum, a meio de uma pandemia, na belíssima Casa Golferichs em Barcelona. Numa outra situação, teria finalmente voltado a Barcelona, catorze anos depois. No meio da peste não me desejei passar pelo autoritário e penoso processo de embarque higiénico. Fiquei no Porto, como sempre faço: a peste foi-me outra-vez desculpa oficial para tudo.  

IV

O que me interessou particularmente foi a deliciosa transformação que o Rui Resende e a Mireia Miralles deram à letra d´ A Última Vez
Um poema que tentou uma canção e que se (re)escreveu pela música e pela voz: eis uma definição de letra.

V

A música que eu ouço não tem letra: Sakamoto, Reich, Einaudi, Glass, Richter. O Rui diz-me que eu gosto de “música para quem nem gosta nem de música, nem de silencio”. 
A Última Vez também não deveria precisar de letra. Mireia Miralles é catalã e quando canta o meu português cria uma nova língua. 
Talvez uma letra não tenha nada a ver com quem a escreve, mas sim, com quem a canta: eis o que se aprende a escrever um poema.
Talvez afinal, as músicas precisem de letra quando têm voz como a da Mireia.

VI

A Última Vez é sobre um tempo, há mais de catorze anos, onde eu escrevia poemas melancólicos, sofridos e fatalistas sobre a nossa irremediável condição (que partilhava com o Rui) de azar aos amores. Entretanto, o Rui encontrou a Fernanda e eu a Silvia e os poemas tornaram-se particularmente desnecessários, ou como diz o poeta “o mundo mudou”.





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