31.05.2021 Interessa-me particularmente a decadência III



I

Os tempos da peste estão no fim, mas em Fevereiro de 2020 quando Ana Raquel Pratas fotografou Os tempos da peste (ou a vigilante da decadência), a peste ainda mal tinha começado.
Na imagem, uma asa cujas penas mais nos parecem lâminas, protege Veneza da morte. Mas é a própria morte que protege afinal Veneza da morte. Veneza, como todo o Ocidente morre, lentamente. Cabe à morte fazer-se guardiã da lenta passagem do tempo lento.
Mas é uma guardiã em espera num tempo que tem tempo para cheirar uma rosa, esse objecto polissémico que nos abre a possibilidades infinitas de interpretação. A morte é afinal vigilante resignada da inevitabilidade da passagem do tempo, que apesar de manter sisificamente a sua tarefa de defesa da História, encontra tempo para ocupar-se de uma flor. 

II

As asas mais famosas da História são de uma tal de Vitória de Samotrácia ao cimo de uma enriquecedora escadaria do Louvre. Enquanto não ganha, naturalmente, o seu lugar no apartamento, Os tempos da peste (ou a vigilante da decadência) quando chegou a minha casa pousou-se em frente a um calhamaço de História de Arte da Gulbenkian ao lado do dourado e de Niké. Tivesse sido intencional e não teria sido tão particularmente interessante.


III

Talvez só o Angelus Novus possa rivalizar com Niké de Samotrácia. Mas a cómica representação de um anjo por Klee só viu o seu lugar na História porque Benjamin assim o entendeu (pretensões lançadas – só a arrogância intelectual de uma segunda-feira de nevoeiro me pode salvar a mim). 
O Angelus Novus de Paul Klee vira-se para o passado, mas fala-nos do progresso. O Anjo (que é também morte) de Ana Raquel Pratas, fotografado em tempos desacreditados de utopias, não olha mais longe do que a sua própria condição de decadência.
E se abre as asas como quem guarda, é porque sabe que só lhe resta atrasar o tempo (porque é morte). San Giogio Maggiore de Andrea Palladio representa então esse tempo em protecção, outrora moderno no seu mármore pentélico, hoje história e/ou apenas set design para turismo (uma outra protecção para o património ou a única, e inevitável, protecção).

IV

E falemos agora da pessoa por baixo da máscara, chamemos-lhe Tadzio (tinha que ser). Naquela manhã de Fevereiro, Tadzio ouvira rumores de fim-do-mundo. A peste, que aí vinha de oriente – para onde Veneza olha – cancelara o Carnaval. Alguns mascarados eram ainda permitidos pelas ruas. Em frente ao espelho, Tadzio incapaz de se decidir, decide ir com tudo: anjo, morte, rainha e femme fatale com a sua longa peruca branca (preferimos imaginar assim: são coisas do tempo). Tadzio, que antes de sair pega numa flor, teve ainda espaço para o seu relógio de brilhantes. Tadzio foi mesmo com tudo. 
Para o fim, há que ir com tudo! 
Nem que o fim seja lento - tão lento como o tempo marcado por aquele relógio, tão pretensiosamente falso como qualquer existência.

V

Os tempos da peste (ou a vigilante da decadência). A Ana Raquel Pratas que me perdoe o basptismo. Não constava que a obra tivesse nome, porque não constava (à autora, e só á autora) que a obra fosse obra. 
Agora, que a obra é obra, não é obra porque tem nome, não é obra porque têm crítica, é obra porque tem olhar autoral, técnica e lugar: e o lugar (para já, em espera) é um vão-de-escada num apartamento de quem espera que a peste lhe devolva o prazer da viagem sem máscaras. Mas, afinal, a peste ainda não acabou. 
Afinal, ainda vivemos os tempos da peste.





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