19.06.2021 Interessa-me particularmente a loucura e o magma digital
I
A determinada altura, Jan Le Bris de Kerne pergunta a Jack Lang: “Como podemos tornar o sábio, o conhecedor, o sensato, o iluminado novamente audível no magma digital louco que, como lava, parece engolir tudo no seu caminho?” O ideólogo cultural não arrisca: “Não tenho uma resposta pronta.” Como se pode ter uma resposta-pronta para a pergunta mais importante dos nossos tempos?
II
Consta que o nosso entrevistador, de nome fascinante: Jan Le Bris de Kerne, terá interpretado um polícia no Cadências Obstinadas (2013) de Fanny Ardant. Espera-se, que a qualquer momento, o aquário do hotel tome o lugar de protagonista. Talvez seja esse o único ponto de interesse particular no filme: a importância de um excêntrico elemento na arquitectura de interiores (cenário) de um hotel. Esse - e (a cancelada) Asia Argento. Esse - e a complexidade linguística (quem não se lembra do diálogo à mesa de Um Filme Falado (2003) de Manoel de Oliveira). Para quê escrever diálogos numa língua se se pode escolher todas?
III
“Não tenho uma resposta pronta. Acredito que devemos restaurar a paixão, o gosto, o entusiasmo da cultura viva: o cinema nos cinemas, que pode ser uma festa para a mente; devolver um lugar ao teatro em todo o lado, mesmo nas aldeias; devolver ao seu lugar o amor dos livros. Podemos obviamente impor um certo número de restrições e obrigações fiscais e financeiras aos GAFAs, e creio que o Comissário responsável, Thierry Breton, está a trabalhar nesse sentido. O mais importante seria que cada um dos nossos países fosse capaz de devolver à cultura o seu melhor lugar. Para mim, o primeiro lugar.”
IV
Interessa-me particularmente esta ideia da fluidez espessa e arrasadora do magma para caracterizar o domínio seminal dos GAFA´s (Google, Amazon, Facebook, Apple). “O magma digital louco”. Gosto da ideia da loucura enquanto momento da nossa alienação colectiva – paranoia, talvez – incapacidade de interpretação dos sinais dos avanços digitais (que tudo engolem). Sob pena de cair na ridicularidade da metáfora, se o digital for um vulcão, acredita-se que, para já, ainda está adormecido.
V
Mas Jan Le Bris de Kerne não resiste: “Desculpe a pergunta indiscreta, mas como é a decoração do interior ou do pessoal de Jack Lang? É mais o minimalismo contemporâneo ou o classicismo denso e cintilante?” Se a outra, a primeira, era a pergunta para um milhão de dólares, esta é afinal que (me) interessa particularmente: e a sua Casa, como é a sua Casa? Interessam-me particularmente os interiores e gostava, como Jan Le Bris de Kerne, de encontrar o momento certa para a pergunta: e a sua Casa, como é a sua Casa? E claro, em seguida ser convidado a entrar!
VI
Sobre os avanços digitais que tudo engolem, o Público apresenta-nos uma peça sobre a exposição Tudo o que eu Quero. Onde antes, os artigos jornalísticos prestavam-se a fomentar o desejo da visita ao lugar, à experiência, ao encontro, hoje servem a hiperligação: para quê ir, se já está tudo no Google Arts and Culture, mais disponível, mais acessível, mais cómodo, mais completo?
Diz-se que as novas gerações não sabem distinguir a ironia. Acrescentamos, também não sabem distinguir a exposição do seu simulacro (louco) digital ou a exposição enquanto aquário.
O aquário do Hotel de Asia Argento, como esperado, não resiste. Porque era frágil, imodesto, supérfluo e exuberante como a boa arquitectura de interiores deve ser. A arquitectura sobrevive ao elemento, mas o elemento não sobrevive sem a arquitectura. Um hotel para um aquário. Um filme para um aquário.
VIII
Jack Lang fala-nos da necessidade de “devolver à cultura o seu melhor lugar… o primeiro lugar” e afinal, os GAFA, hoje, são o mais próximo que temos do lugar primeiro. Que desinteressante é o nosso aquário para a cultura que nos obriga a olhar de fora, para dentro, algo que não sobrevive se estiver contido!


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