05.07.2021 Interessa-me particularmente a esperança
I
Sexta-feira fui à pica. Relatório: tal como nos filmes de sci-fi do século passado, desloquei-me a uma instalação militar esvaziada de guerra, esperei ordeiramente numa fila de iguais, segui maquinalmente o processo sem questionar, “Senhor José, não vai sentir nada está baen-ê?” diz-me uma jovem da minha idade, vestida de branco, incapaz de adaptar o protocolo ao utente – ou uma tal de empatia! Na sala de espera (aqui, espera-se depois), dezenas de almas olhavam autómatamente para o telemóvel, algumas telefonavam a contar as novidades, orgulhosas do seu momento e uma, apenas uma, martelava dedicadamente as teclas de um mac a adiantar trabalho – lamentei a pobre trabalhadora não ter um gloriosa oportunidade de aproveitar aquela meia-hora de pausa colectiva para degustar a simbologia da coisa. Olhei melhor, conhecia-a!
Talvez a peste para ela seja apenas um pormenor no seu mundo assoberbado. A mim, a peste interessa-me particularmente.
Sexta-feira fui à pica. Relatório: nada a declarar. Nenhum efeito secundário (nenhum efeito principal também). Por precaução e controle da hipocondria, um sábio cubo de gelo para evitar qualquer mal do corpo e um placémico bem-u-ron para evitar qualquer mal da alma. Hoje é segunda-feira: nem sono, nem cansaço, nem febre, nem dor, mas também nenhuma esperança particular.
Sexta-feira fui à pica: um relatório para a posteridade (ainda que tenha a convicta certeza que nunca me re-lerei para re-conhecer como foi afinal aquele momento em que fiz parte entusiástica de uma esperançosa catarse colectiva).
“Qual foi a marca do teu racionamento individual de esperança?”, perguntaram-me hoje. Uma pergunta recalcada, repetida mecanicamente, mas igualmente estéril. Nenhuma das várias pessoas que mo perguntaram (e a quem eu perguntei, confesso) tem a mínima qualificação para discorrer sobre os préstimos e as conveniências de cada marca.
Curiosidade de conveniência, apenas.
Mas a questão em si inútil, à qual anuí pfizer (novo registo igualmente inútil para a posteridade), trazia em si um interesse particular: sendo sempre “racionamento individual” enquanto objecto, tratamos afinal de uma esperança, não individual, mas colectiva.
Ou pelo menos assim se espera - ou pelo menos assim é a esperança!
Sexta-feira fui à pica. Meia-pica, falta a outra meia. No final do mês poderei finalmente apanhar um avião, mas talvez não o faça. Quando é que acaba mesmo a peste para ti?
Para a minha conhecida que trabalhava durante a espera pós-vacina, talvez a peste nunca tenha existido! Um pormenor no todo a que se adaptou o melhor possível. Um desafio? Talvez. Uma oportunidade? Certamente. É empreendedora a minha conhecida – eu não!
V
À minha frente, uma avó, uma neta e uma bisneta, claramente deslocadas do grupo dos-trintas-aos-quarentas, faziam o deleite da fila da vacinação. Conheciam a assistente que fornecia formulários e canetas e trocavam galhardetes: “Óh, oube-lá, tou com fome, vai demorar muito isto?”, “Olha, trazias uma sande da Badalhoca no bolso e já ias aviada”.
A bisneta de 3 ou 4 anos, que saía constantemente do ordeiro carril, era ciclicamente alertada pela mesma frase-feita: “É a última vez que te volto a avisar” dita por uma mãe há pouco tinha atingido a maturidade para reconhecer a importância da tal fila.
De resto, os dos-trintas-aos-quarentas, sempre agarrados aos ecrãs, eram todos extremamente aborrecidos, monótonos, iguais.
VI
Quando é que acaba a peste? Para mim, quando tirar a máscara, tiro a peste. E tu?


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