I
“Limitação
da circulação na via pública a partir das 23h00”. Herbert
e Faye recebem Josh em casa sempre depois das 23h12. Josh é proprietário de um
snack-bar revivalista e traz sempre sobremesa fresca. Falam até às 2h sobre os idos
anos 90. Josh segue para casa de lambreta eléctrica ou a pé. Lucy, por vezes,
salta ao pé-coxinho e imita o jogo da macaca de forma ridícula ou deliciosa –
depende de quem olha.
“Restaurantes
podem funcionar até às 22h30”. Josh desliza as cortinhas, desliga o
néon, fecha o saco do lixo e amarrota um maço de notas na roupa interior antes
de sair. Lucy passa em frente ao snack-bar sempre às 22h47 e sempre olha. Às
22h46, Josh vai despejar o lixo para ver Lucy. Hoje, Lucy não passou.
“Às
sextas-feiras a partir das 19h00 e aos sábados, domingos e feriados durante
todo o dia, o acesso a restaurantes para serviço de refeições no interior é
apenas permitido aos portadores de certificado digital ou teste negativo”. Faye
está vacinada e vai jantar fora. Herbert não. Lucy também não, mas como está
sozinha na cidade de Josh, não costuma jantar fora (mas também vai), limitando-se a requentar tupperwares
herdados.
“Vigora um máximo de 4 pessoas por mesa no
interior e de 6 pessoas por mesa na esplanada”. Josh não
tem esplanada. Serve ao balcão. Não tem concertos ao vivo e faz lembrar o Jude
Law no My Blueberry Nights ainda que dentro de um snack-bar neo-modernista.
Lucy não conhece 6 pessoas que a levem a jantar. Depois da noite de hoje,
conhecerá 3 que estavam mesmo a precisar de uma quarta que conhecesse mal os anos 90.
“Exigência
de teste negativo ou certificado digital para o acesso a estabelecimentos
turísticos e de alojamento local”. Herbert e Faye já não dormem fora há
dois anos. Josh, que é proprietário de um snack-bar, dorme num hotel. Lucy é
uma viajante profissional e também amadora.
“Espetáculos
culturais até às 22h30”. Faye gosta de ler. Herbert joga dados. Antes das 22h30,
Lucy frequenta hipódromos e cursos variados para solteiros. Depois das 22h37, Lucy
dorme. Josh, quando está só, costuma rezar. Se Lucy reza desconhecemos. Herbert
é ateu. Faye ainda não se decidiu, mas inclina-se para credos exóticos.
“Casamentos
e batizados com 25% da lotação”. Herbert e Faye, quando se casaram, não
fizeram festa porque era isso que estava na moda à altura (faz 13 anos). Josh
não se quer casar. Lucy sim e quer uma festa tipo burning man. No snack-bar
de Josh houve uma vez um casamento e também um funeral. Em 25% da sala de Josh só
cabem ele e Lucy e duvida-se (e ainda bem) que possam cumprir algum
distanciamento.
“Comércio
a retalho alimentar até às 21h00 durante a semana e até às 19h00 ao fim de
semana e feriados”. Josh, devido à
sua profissão, compra a horas impróprias. Lucy manda vir. Os outros não
interessa, mas se querem saber, Faye tem uma horta.
“Comércio
a retalho não alimentar e prestação de serviços até às 21h00 durante a semana e
até às 15h30 ao fim de semana e feriados”. Lucy não possui coisas. Josh vive num
hotel. Herbert e Faye têm um apartamento apinhado de memórias e outros objectos
que esperam que o tempo lhes dê significado. Josh não vive num Hotel, mas
parece. Lucy possui roupa colorida que apenas usa entre as 12h e a 17h. Todos
consumiam ao Sábado à tarde. Josh recusa-se a comprar online. Ao Sábado à
tarde, Faye folheia revistas de decoração de interiores enquanto espera a hora
de jantar fora.
“Eventos
em exterior com diminuição de lotação, a definir pela DGS”. Josh,
Faye, Lucy e Herbert estão na rua. Aguardam os critérios para viver. Amanhã é
outro dia.
II
Estou
cansado!
III
IV
Josh,
Herbert e Faye, à porta de um snack-bar decadente, cumprimentam-se
com beijos e abraços como bons amigos que partilham tertúlias pela noite fora,
mesmo em tempos de peste – principalmente em tempos de peste. Josh, à
porta, de pé, serve a Herbert um pequeno banco metálico com patine. Herbert,
com a sua mão direita procura avidamente na carteira de Faye o auto-teste
acabado de comprar. Faye, vacinada, entra e procura a sua mesa (não
há muitas, mas há um grande balcão). Herbert senta-se, desmascara-se,
testa-se. Herbert, o cliente, naquele Sábado à noite tem de provar ao
seu amigo Josh, na qualidade de proprietário daquele snack-bar neo-moderno,
ao estilo Vitor Palla e Bento de Almeida, que tem o registo limpo. Chega Lucy.
Josh e Herbert não conhecem Lucy pessoalmente, mas Josh
conhece Lucy de todos as noites. Herbert levanta-se e encosta-se
à montra da livraria do lado, enquanto aguarda pela prova da sua liberdade (olha
para capas de livros de decoração quem pensa oferecer a Faye, que ainda assim, prefere
revistas). Lucy, a cliente, senta-se e pede um auto-teste a Josh,
o proprietário.
Josh, entusiasma-se porque verá Lucy desmascarada pela
primeira vez.
Faye abre uma revista de decoração de interiores antiga enquanto espera por Herbert (o tema das páginas centrais é o papel de parede aos estilo William Morris). Se Herbert testar
positivo, Faye acha que janta sozinha (ou assim definiram o seu
protocolo). Josh tem o snack-bar vazio - coisas da peste! Serviu uma cerveja libanesa a Faye.
15 minutos depois Herbert deu positivo. Lucy também.
Josh mandou-os
entrar. Baixou as cortinas. Perguntou a Lucy o seu nome. Cumprimentou-a
com dois beijos como se fazia nos anos 90. Desligou o néon. Abriu uma
garrafa.
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