23.07.2021 Interessa-me particularmente o cansaço (parte II)


I

Pelos estiradores da faculdade no início do século pensava-se que ainda íamos a tempo de apanhar os restos da modernidade. Com estes fragmentos caoticamente empilhados, mas liquidamente compactados numa densa e translúcida mesa (ligeiramente) rampeada, desenharíamos qualquer coisa como um palco para um estadium civilizacional feito dos sonhos de uma qualquer ideia de Cultura.

II

Cheguei tarde! Devia ter vindo mais depressa (ou antes).

III
Caro Sérgio, permita-me subscrever (para análise) os trintões de 80 na mesma mágoa de lamentos e inconquistas, tão igualmente distantes que nos sentimos de gerontes e unicórnios. A geração de oitenta, como de setenta, não conseguiu cumprir-se (ainda!) e mudar (-nos).

IV

Há fé que, por cá, as máscaras comecem a cair ainda antes do fim do mês. Outros, desejam que não caiam antes do fim da década, invejosos de perder a conquistada superioridade higienicista iniciada por uma das (várias) vias da modernidade
A nós, cabe-nos a outra, ingloriosa e impossível via, que deseja perpetuar a estrumeira das ideias no consolo de que, talvez, por-vezes e com sorte, no meio dos dejetos sobressaia qualquer coisa de particularmente interessante: como a indefinível Cultura / ou uma qualquer outra melhoria.

V

“I´m Late” está escrito na montra da minha loja-galeria. Agora, toda a cidade sabe que me sinto a chegar tarde. 
Cheguei tarde à arquitectura, no início do milénio a sonhar com a ideia do atelier, mas já no tempo das equipas, das coordenações e das sinergias. 
Cheguei tarde às lojas em tempos digitais, de comercio eletrónico preguiçoso, asséptico e desalmado.
Cheguei tarde às marcas, onde por já conhecer tão bem o seu mundo, sabia que daquela forma tão particular, iria certamente falhar. 
Cheguei tarde à escrita, aos blogues, coisas de outras décadas, qual salão dos recusados, dos preteridos e desajustados, já não servem o mérito irresponsável.
Cheguei tarde aos podcasts, já no fim de uma breve moda de quem se fartou de ver e decidiu ouvir o que nunca tinha visto.
Cheguei novamente tarde à arquitectura, em tempos de matérias-primas em esgotamento, mão-de-obra em aborrecimento, pinterests, algoritmos e criativas apps que esgalham uma divertida planta enquanto outrora apenas se tinha tempo de afiar o lápis.

VI

Chegar tarde: eis um traço de carácter.

VII

Chegar tarde: eis o que se pode tornar, irremediavelmente, numa virtude. Mas só amanhã, porque hoje já é tarde!

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