26.07.2021 Interessa-me particularmente a paranoia (e a vaidade) XVI

 



 I

Os tempos da peste apressam-se para o fim, mas por cá, uma parte particularmente interessante dos nossos concidadãos recusam-se a aceitar tal desenlace e dizem: não ao fim da peste!
Num país pobre, submisso e sem qualquer visão (ou previsão) de futuro, alguns portugueses viram no combate à peste uma virtude atingível: ficar no sofá, escutando pacientemente a contagem pela televisão. Habituado à sua sorte e ao insucesso das suas incapacidades, o indígena - que roubo ao Vasco - encontrou na peste um propósito onde (só) podia sair vencedor. Tornou-se exímio no cumprimento simples da santíssima trindade da higiene e ainda mais destemido na nobre arte de apontar o dedo ao criminoso.
Para alguns portugueses, quando "amanhã" nos tirarem as máscaras - aquele  mensurável símbolo da superioridade dos inferiores - todo um projecto de vida se desmorona. E a culpa, afinal, é da falta de motivos para a vaidade.

II

III

Os tempos da peste apressam-se para o fim e assim se esfuma a oportunidade para o desporto nacional da procura do culpado. Imbuído dos restos transviados do judaico-cristianismo, misturado com uma narcísica pós-modernidade, a culpa é sempre do outro, que vem de fora: passar o natal, ver a bola ou estender-se enroscadamente ao sol; mas principalmente, daquele que contra todos as capitais sugestões, teima em procurar fora de casa algum alívio e um qualquer consolo no contacto com o que nos é fisicamente comum.

IV

Espera-se que, a partir de amanhã, estar fora de casa desmascarado seja uma intermédia normalidade a caminho da loucura prometida.
Aguardam-se (compreensíveis) colectivos uivos de desdém ao equilíbrio. Não será ainda precipitado acabar com a peste? A superioridade higienista de novo substituída pela qualidade de quem se esforça.
Finda a peste, naquela conversa banal de encontro fortuito, teremos então de voltar a falar do tempo. Eis um substituto para a peste: o tempo, na sua dupla dimensão não meteorológica: a cronologia e a ecologia.

V

Ontem morreu o Otelo e o país dedicou-se à soma dos positivos e dos negativos para apurar, em jeito de Juízo Final qual a manchete mais adequada. Discutiu-se sem se discutir, o bem, o mal e a verdade. E o judaico-cristianismo que teima em não nos largar. Temos de aprender a viver com heróis imperfeitos e criminosos altruístas e de preferência, tudo no mesmo actor de transformações.

VI

Nos Jogos Olímpicos, “medalhados podem retirar a máscara 30 segundos para fotos no pódio”. 30 segundo: eis o tempo permitido para a vaidade antes de regressar à paranoia.

VII

O nosso concidadão que não deseja acabar com a peste, nunca teve motivo para se sentir vaidoso. E o judaico-cristianismo que teima em não nos largar.
A máscara, enquanto símbolo de igualdade neste grande dissabor, permite-lhe esquecer essa falta de orgulho e transforma-o num superior agente de saúde pública, um qualquer estatuto de herói que de outra forma, a vida, lhe havia negado.
Nada é tão democrático como uma máscara.
Usar uma máscara para combater a peste é o único sinal de vaidade para quem não possui outra oportunidade de orgulho.

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