11.08.2021 Interessa-me particularmente a paranoia (e a praia) XVII

 
 


I

Na praia, quando a maré está cheia, é a peste que dá à costa. Milhares de indígenas (porque os estrangeiros - como se diz lá por baixo - teimam em não voltar) recostam-se desnudados ao hálito culpado do seu semelhante.
Sem nojos, pudores e receios, o português passeia-se higienicamente despreocupado pelo areal. Molha os pés (que a água está fria) e recebe o sol em doses licorosas sobre o nariz, a boca e a pequena tira descolorada que os liga às orelhas.
Vinte metros acima, o mesmo português ainda em tronco nu, mas já devidamente achinelado, caminha solitariamente mascarado pelo desgastado deck que o levará ao espartano aparthotel à beira da estrada.
É tudo uma questão de solo. O solo mole faz esquecer a peste; o solo duro relembra as virtuosas paranoias securitárias que assaltam irracionalmente o critério do indígena há ano e meio.
O solo: eis a diferença da tormenta higiénica.

II

O mundo (para o humano) poderá acabar brevemente. Mas por cá ainda nada se sente. Estamos habituados aos vinte anos de atraso. Quando a Europa estiver a arder em fúria ambientalista, em Portugal continuaremos despreocupados sobre o areal, mas já devidamente mascarados (de fato de astronauta asseado) na companhia de alguns estrangeiros que seleccionámos pela sua esperteza monetária. Salvar o planeta: eis um lema desajustado. Salvar alguma humanidade: eis um objectivo capaz. Quem é que selecionamos?

III

Da santíssima trindade da higiene resta hoje apenas a máscara enquanto totem. É o solo que se ocupa de nos fornecer os estímulos para o seu uso. Faltam 8 pontos percentuais para o Indígena poder andar desmascarado na rua. Tal se espera que no dia, novos dados desenhem novos critérios.
A Marina de Vilamoura é o penúltimo nível de um longo teste à moderação enquanto método para a peste. As famosas “manadas de jovens" existem mesmo e servem de utilíssimo desafio ao mais primário dos negacionistas. O último nível é o areal.

IV

Uma semana sem telejornal é uma bênção. De volta, regressa-me o obnóxio hábito de ter sempre a TV ligada. Como se não chegasse, refresco meia dúzia de jornais digitais de vinte em vinte minutos para saber as últimas. Sofro de Neomania jornalística. Obsessing over the new doesn’t have to be a bad thing. If you focus on doing one thing in new ways, you can put a positive spin on neomania and become an expert at anything you set your mind to.Não vai funcionar. Também sofro de conservadorismo.

V

E qual é a última? Já não iremos a tempo de salvar o (nosso) mundo. Interessa-me particularmente esta ideia possível da extinção. O des-uso da razão que dá lugar ao esforço narcísico é um óptimo método para o fim. 

VI

O método do Vasco era a frase. Uma frase: tudo. Hoje, preocupo-me apenas com as frases. Amanhã, uma nova preocupação. Eis um neómano, ou ainda um diletante.

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