09.09.2021 Interessa-me particularmente os tempos

 
I

Consigo encontrar três benevolentes razões para uma indiferente tolerância sobre a recente mutação do Museu do Romântico, no Porto: nunca se ter ido ao antigo; não ter especial estima pela reverente figura de D. Carlos Alberto da Sardenha; esperar com particular interesse qualquer espaço preparado pelo Camilo Rebelo para as peças do Rui Chafes.
Como estou à vontade nas três, resta-me pensar se foi apenas uma questão de peso que permitiu ao velho piano oitocentista ficar-se por lá a evocar, solitariamente, uma época?

II

Quantas mortes pela peste estamos dispostos a aceitar para vivermos sem restrições? É esta a difícil pergunta que faz manchete no Público. E já vem tarde. Por dia morrem à volta de 300 pessoas em Portugal. É tudo uma questão de estabilidade. Qualquer número é aceitável desde que estável. Habituamo-nos: eis uma resposta. Na Ásia – na qual se inserem as ocidentalizadas Austrália e Nova Zelândia – escolheram o zero e correm paranoicamente atrás do prejuízo, entre os neo-medievais confinamentos e as ultra-modernas pegadas digitais.
Por aqui, procura-se, no trabalho do equilibrista, um número de conforto. Mas mais do que um valor (quanto são?) importa uma circunstância (quão improvável é cada morte?).
Andamos há 2500 anos a evitar as perguntas difíceis e estamos bem assim: hábitos!

III

Claro que o piano ficou pela sua condição intemporal, capaz quer de reproduzir sons d´outros tempos, quer ruídos novos, determinação da qual não goza o lustre, trocado pela luz eléctrica, a cristaleira, sonegada pela evolução das vaidades ou o globo de pé-alto, substituído pelo cómodo google-maps.
Estes três objectos, entre outros visíveis nas reportagens fotográficas pré-peste, estão hoje em parte incerta, mas espera-se que brevemente, num qualquer admirável gesto de curadoria, possam voltar à Quinta da Macieirinha, envolvidos por uma outra qualquer narrativa expositiva, que os “mostre” na sua qualidade de relíquia útil – tal como o piano.

IV

Não me interessa particularmente este estado da Extensão do Romantismo, feito white-cube (colorido para o caso) de arte contemporânea para viajante-ver. Mas também não me interessava a anterior simulação de vida inerte herdada das lógicas da outra-senhora atrás da baia de segurança. Antes alguma coisa a meio que fizesse ligar os tempos numa qualquer ideia de continuidade.
Mas isso é particularmente difícil de se conseguir fora da retocada articulação das palavras que tudo torna tão simples e possível.
Como desenhar um Museu contemporâneo com objectos do passado?

V

Na segunda-feira as máscaras saem oficialmente da rua. Algumas já saíram. Outras vão ficar. Ficarão enquanto não encontrarmos, colectivamente, os tais números de conforto.
É urgente respondermos às perguntas difíceis. Qual é o teu número mágico para o fim de peste?

VI

Não aprovo, mas percebo a teoria da intervenção do Ex-Museu do Romântico: eis uma resposta para estes tempos que exigem maniqueísmo. Outrora ficaria num indistinto mas confortável nim, enquanto continuava a procurar nos Maias tudo o que se precisa de saber sobre o século XIX, o XX e o XXI.

VII

Como desenhar um Museu contemporâneo com objectos do passado? O Eça realista que nos ensine!
 

 

 


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