15.09.2021 Interessa-me particularmente a geografia e o desejo




I

“30% dos residentes das cidades querem viver no campo”. Eis o allure da província enquanto chamada de uma pós reflexão de peste. E que procuram os meus concidadãos? O “contacto com a natureza” e a sempre tão interpretativa “qualidade de vida”. Se na segunda é-nos impossível contra-argumentar uma difusa abstracção do conceito que nada esclarece, já na primeira aplaude-se a vontade de exotismo de uma espécie de flanerie rural, partidária do isolamento social que a solidão dos campos tão bem se habituou a proteger.
Sinto-me à vontade para lançar as devidas farpas à temática: pois vim de lá e de lá guardo pouco mais que a maniqueísta imagem que Manuel Vicente ouviu de Louis Kahn: “o campo é sítio onde paro para mijar entre duas cidades”.



II

“É na faixa etária dos 35-44 anos e entre os habitantes de Lisboa, Braga, Évora e Coimbra que este apelo do mundo rural se mostra mais forte, com 41% dos inquiridos a afirmar que gostariam de trocar a cidade pelo ambiente do campo.”
Pois imagino que um terço dos meus vizinhos geracionais não deseje realmente o eremitério (por mais digitalizado que o ficcione) ou sequer o campesinato. Antes prefere a proximidade à santíssima trindade das amenities de urgência para si e para os seus filhos: escolas, supermercados e hospitais (a ordem depende da escala etária). Ora, tal não se encontra no meio do mato, senão na província.
O meu concidadão deseja assim a província, uma espécie de urbe em miniatura, devidamente rodeada de mato à distância do pé, onde possa cheirar os odores da flora e sentir os humores da fauna, enquanto homo digitalis vive a sua verdadeira vida, aquela que nos é comum, para dentro de um ecrã.
Mas afinal, o que o meu prezado semelhante deseja (se bem o reflectir) não é campo ou a província, senão apenas uma melhor cidade, ou como a moda dos dias nos conceptualizou: a cidade de 15 minutos.

III

Em Portugal, como em poucos outros países consegue-se este maravilhoso prodígio não de uma cidade de 15 minutos, mas de um território onde em 2 horas, mais coisa menos coisa, independentemente do sítio onde estamos (qualquer que seja o meio de transporte) se pode ir da cidade ao campo, da praia à montanha, da periferia ao subúrbio, aproveitando os deleites da nossa exótica disposição geográfica de uma estreita barra a beira da água.

IV

Precisa afinal o jovem adulto, à conta da nossa geografia, não do êxodo-urbano, mas sim de tempo livre para sair e visitar com os seus descendentes a tão desejada rusticidade. Tempo (dinheiro), bons transportes e uma rede digital razoável, que o permita postar as suas veleidades folclóricas em tempo real, fazendo pirraça ao seu igual que, por virtudes de circunstância, teve de ficar bunkerizado, a laborar em frente ao computador.
Tempo, ou como a moda dos dias nos conceptualizou: a semana de quatro dias, cada vez mais possível fruto da moderníssima agenda digital.



V

As berças de onde queria fugir em direcção à endeusada e virtuosa cidade nos anos 90, em nada se assemelham às de hoje. Temos agora já as condições para ver o interior sem o preconceito das antigas dicotomias tão bem simbolizadas pela mija de Louis Kahn.
E é então por isso, tão surpreendente ler no estudo da Bloom Consulting um desejo tão desajustado ao país. Um desejo tão recorrentemente importado como qualquer outro gosto, que demora, não 15 minutos, nem 2 horas, mas 10 anos a chegar cá.


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