22.10.2021 Interessa-me particularmente as políticas e as poéticas



I

Não, o Governo não vai cair por estes dias e Paulo Rangel não será já empossado por aclamação. Mas é pena! Não o digo já por razões políticas, que essas aborreceriam de urgência este meu pequeno público (fã de outras guerras de tronos ficcionais, não das que nos são concretas), mas por razões estéticas – e haverá outras?
Por estes dias, o que tem interessado particularmente à turba digital (como agora se diz) é uma certa poética pirosa vertida na prosa (olha quem bem!) do texto de despedida de Rangel no Público. Zink diz que há limites, que pode perdoar muito a Rangel, menos isto. António Guerreiro ataca com “kitsch viscoso”. E falamos então de quê?

II

“A escrita é o monólogo mais plural que conheço. As palavras, indomáveis como são, fazem sempre ricochete. Como num jogo de espelhos, reflectem-se até ao infinito e, como nas caixas de bonecas russas, afundam-nos até ao nosso interior. São piores que o vento, ninguém as para com as mãos. Mesmo escritas, e ao contrário do brocardo latino, voam.”

III

Ui!
Há ricochetes, espelhos infinitos, bonecas russas e até mesmo brocardos latinos a voar (confesso que li brocado, o que tornou a coisa ainda mais interessante).

IV

Mas há uma boa frase no início. A escrita é o monólogo mais plural que conheço.” De seguida, Rangel vai buscar Torga para se justificar e lembra-nos que “Ninguém lê. Toda a gente deseja apenas ler-se.”. Mas não é só nas leituras que este acesso egoístico de procura pessoal se espelha. Por estes dias encontrou-se uma nova parangona de conversa de rede-social (antes dizia-se conversa de café): “Fulano não serve a política, serve-se na política”.
Todos, sem excepção, se servem na política, mas só alguns serviram a política enquanto se serviam. E enquanto na política nos procuramos, resta-nos apenas desses andar à procura (hoje tudo soa piroso, não?).

V

Depois de seis anos de austeridade estética da nova união-nacional (ou como diz A. Guerreiro “regiões pragmáticas”), coligado com uma esquerda incapaz de se rir de si própria, constantemente insatisfeita nos seus micro-dramas radicais de emergência, a somar a doze mais três da boçalidade de Rui Rio e uma vida-inteira da rusticidade de Cavaco, eis que o lirismo espirituoso de Rangel, estranhamente, até cheira a fresco.

VI

Não, o Governo não vai cair por estes dias. Se caísse, a esquerda por sua culpa, por sua tão grande culpa eclipsava-se, a união-nacional saia reforçava e a graciosidade poética de Rangel ficaria adiada até se acabar o último cobre europeu. Não, o Governo não vai cair por estes dias. Mas é pena! Tal como na ficção, isto só tem piada quando, em guerras pelo trono, o trono muda de dono (ai!).

VII

E Rangel ainda nos diz que “por mais que a tanto aspiremos, nunca conseguimos verter no texto a riqueza caleidoscópica dos nossos pensamentos." Ou como nos legou o Nabokov “Penso como um génio, escrevo como um homem de talento e falo com um atrasado mental”. Um político como Nabokov não se safava. A oralidade: eis o dom do político.

VIII

“Ninguém lê. Toda a gente deseja apenas ler-se.” Eis o porquê de termos maus políticos e só ficarmos, com os que se servem! Espera-se que Rangel no seu monólogo político, procure mesmo ser "plural".
 

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