02.11.2021 Interessa-me particularmente o vazio

 



I

“É vazio!” foi tudo o que a Sílvia me disse depois de ter perdido duas horas e meia da sua vida a acompanhar-me no Dune (2021) de Denis Villeneuve. Vazio! E datado!
Dune é um filme que nos fala do feudalismo, do patriarcado, da hereditariedade e das hierarquias. Apresenta-nos as mulheres na sua qualidade de feiticeiras na sombra (dos homens), cobre-as de véus enquanto servem (e) os homens - os bons - são viris e honrados. Os vilões são anafados (Stellan Skarsgard a ir beber a Marlon Brando é talvez o melhor de todo o filme) e curam-se em tinas de visco. Dez mil anos depois, tudo o que a evolução tem para nos oferecer é um cheiro bafiento a neo-medievalismo low-tech em tons pastel, cuja grande virtude é ter chutado a inteligência-artificial e preocupar-se ainda com antigos vícios (e virtudes).
Um remake de um filme só faz sentido se for intemporal! E este Dune envelheceu muito mal.
Se à época já dizia pouco, hoje não diz nada (de novo), que é como quem diz, “é vazio!”

II

Parece que o (meu) Michel Onfray se passou para o outro lado.  Onfray partilha com a nova coqueluche da extrema-direita, Eric Zemmour, o mesmo ódio pelo caminho que a França está a percorrer. Diz que coincidem no diagnóstico, mas divergem nas soluções. Onfray, até admite votar em Zemmour, usando para isso a terminologia de Rio sobre Ventura “se se moderar…”. Mas Zemmour não se vai moderar, nem Onfray. Vivem ambos mais de polémicas do que ideologias.
Há dias encheram o Palais des Congrès para um “debate” (com várias aspas) onde cada um teve a oportunidade de coçar bem forte as costas do outro.
O meu Onfray era um radical de esquerda, libertário e hedonista, apresentava-me os cínicos e os epicuristas, enquanto cascava no capitalismo na mesma dose que lhe elogiava as virtudes. Ainda tenho o Decadência, O Declínio do Ocidente na minha mesa de cabeceira. Acabarei de o ler, mas ontem não me apeteceu pegar-lhe. O meu Onfray era o d´ A Potência de Existir e d´ A Escultura do Eu. Este Onfray de agora não sei de quem é!

III

Zemmour, se se candidatar não terá mais que 17%, o mesmo que Le Pen. Zemmour faz Le Pen (e Onfray) parecer uma moderada. Por cá, Ventura tornou o CDS irrelevante. E Ventura não tem 17%. Se há sapatarias especializadas em “botas cardadas” como nos diz o RAP, eles acabam deixam a sapataria genérica.
Zemmour, dizem, é um intelectual e a França sente-se atraída por esta estirpe de homens que trabalham a sua massa encefálica. Eis uma qualidade rara na política, e quando aparece, continuando a imagética cinéfila, fica-se pelo darkside.

IV

O caos político mantem-se por cá. O Chicão é como “o miúdo que está a perder o jogo e leva a bola para casa”, a imagem é boa, mas é do Nuno Melo que gosta de botas cardadas. Os vilões são sempre os mais (particularmente) interessantes. Stellan Skarsgard levita sobre a mesa para ir cumprir uma palavra – mas usou um truque de linguagem: dizer tudo daquela forma particularmente ambígua para não se comprometer. Não seria ele a matar, mas sim o deserto.

V

O deserto é um vazio! Viva a cidade e os seus vilões para nos divertirem. Pode ser que brevemente Onfray regresse do lado negro. Tudo vai de se precisar de e-equilibrar as polémicas para o lado de cá.

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