12.01.2022 Interessa-me particularmente o crime
I
Aqui pela
República decide-se se por estes dias em que modelos um cidadão empestado
pode exercer o seu direito de voto: entre a fila dos párias, o horário
reservado aos proscritos ou o moderníssimo, mas pouco ecológico, drive thru,
confesso que estou curioso com o terceiro: é que se me calhar em sorte encontrar-me
pestilento no dia 30, tenho sempre de passar em frente da urna de voto para ir
buscar o meu carro.
Nenhum modelo
faz jus à nobreza do dia, nenhum é isento de críticas e lamentos: critica-se
pois claro que haja apartheid democrático, mas lamenta-se também que
haja probabilidade de praga. Mas duas semanas depois, a ideia da segregação
democrática, já não nos parece tão pouco democrática, pois não? Como de costume, é
do hábito!
II
Na escala dos
valores, a democracia tem de ficar hierarquicamente sempre por cima do medo,
e como tal, à frente da saúde, da ciência e da segurança. Mas não foi este o
critério para a discussão: foi a quantidade. Os cidadãos empestados poderão
este mês exercer o seu direito de voto não por serem cidadãos, mas por serem
muitos. 100mil era aceitável, 500mil já é demais! A OMS estima que metade da
população europeia seja infectada nas próximas semanas. Face a tão catastrófico
prognóstico, o melhor é começarmos a pensar ao contrário: qual o melhor
modelo para um cidadão saudável exercer o seu direito de voto?
Apesar das
contradições, a peste ainda não é endémica. Mas a paranoia é.
III
Boris Johnson pediu desculpa por ter dado uma festa. A oposição pede a demissão. Já antes, Matt Hancock demitiu-se por ter uma amante. A sua mulher não aceitou o pedido de desculpa. Não dar o exemplo é um crime em tempos de fé na ciência. Nos tempos de outra fé, o celebrado “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”, fazia-se modelo, recusando a culpa e a desculpa. Problema? A simbiose entre a palavra e a acção é pouco natural. Habituados que estamos a outros hábitos, não estamos preparados. Deixemos isso para o homem-novo que se avizinha crente em desejos da perfeição transumana.
IV
Investigadores
japoneses criaram uma máscara feita de anticorpos de avestruz que brilha quando
detecta a peste. Eis uma fórmula antiga para desvendar um crime novo: a luz
ultravioleta (também conhecida pela luz negra) quando apontada para a
máscara identifica o criminoso.
V
No início da
peste, o Contágio (2011) era presença assíduas nas televisões. Dois anos depois
foi finalmente apresentada a paródia que tenta energicamente explorar a nossa caricatura colectiva, e a confronta, fora do ecrã, com a nossa desleixada
incapacidade de aprendizagem. O Don´t Look Up (2021) baralha em duas horas
e meia alguns dos clichés que compõem o momento actual. Mas propositadamente privou-se
de acentuar, em jeito de recusa auto-infligida, a turba média, acrítica e
acomodada, que lá vai acompanhado os esforços dos poderosos, dos mediáticos
e dos lunáticos sobre uma qualquer ideia de bem comum. Ou seja, poupou-nos a
nós, os seus espectadores, de nos vermos cruamente envergonhados
na tela. Falta agora um filme sobre nós, os espectadores da peste e o nosso crime: o desinteresse por nós próprios.
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