10.02.2022 Interessa-me particularmente a paranoia (e a memória) XX

 


 
I

Relatório da minha primeira vez. Tive de tudo um pouco, ou mais precisamente, de tudo um poucochinho: uma insignificante dor de garganta, uma ligeiríssima febre, um lampejo de tosse, uma escassa dor de cabeça e uma ridícula dor no corpo. As graças, dou-as à sorte, que me legou a peste já nos seus fins e triplamente vacinado. Mas por cá ficaram, pois-claro, as minhas habituais ageusia (perda de paladar) e anosmia (perda de olfato), que sempre me acompanham em qualquer gripe, constipação ou resfriadinho. Veremos, por quanto tempo!

II

Mas o grande medo da peste sempre foi a possibilidade da perda de memória. Ontem, durante um episódio da Causa Própria (2022), não me consegui lembrar do nome da cidade do Batman, cujo Asilo Arkham tanto nos remete ao cadavérico Hospital Termal das Caldas Rainha. Peste longa ou lapso passageiro? Talvez apenas a alma a avisar-me para me ocupar menos da terminologia pop!

III

Voltará o cheiro e logo depois o sabor. E a memória? Será que já cá não estava e não se deu conta? Há dois anos que vivemos num hábito particularmente rotinado, numa centrifugação de pequenas acções de higiene e segurança, sem lugar para lugares de excepção. Dois anos num só dia, feito de rotinas elementares e intrincados desencantos. Dois anos, uma memória-única. E isto apressa-se para o fim, mas? É mesmo para quando o princípio do fim? É que já o repetimos tantas vezes.

IV

Acaba-se amanhã a prisão domiciliária. O que fiz em sete dias? Nada! Culpa-se a peste, como sempre. Talvez afinal, para além da memória, a falta-de-gosto não seja uma coisa de paladares e durante o cárcere tenho sido visitado por uma letárgica apatia criativa, crítica e auto-analítica. O que fiz em sete dias? Nada! Eis a peste.

V

É assim a peste, um nada que nos assola, individual e civilizacionalmente. Apatia, ataraxia, desencanto, desalento, um abatimento progressivo que sorrateiramente vai encontrando o seu espaço neste longo dia feito de dois anos. Amanha, acaba-se-me a prisão domiciliária. Vamos acabar com este longo dia?

VI

“Chuva em breve” diz na minha barra de tarefas. É difícil a fé na salvação do mundo com um Fevereiro assim. Há que manter a esperança: uma proposta de quem sabe que pouco mais resta. “Em breve”: uma resposta. A peste acaba em breve. Quando? Brevemente. A minha acaba amanhã e vai daí, é claro que não, a peste nunca foi sobre a doença! Vai-se a doença, fica a peste. 

VII

E a memória? Depois vemos. Se nos lembrarmos!

VIII

E à peste, cheguei tarde, como sempre. É o hábito. Ainda bem. Ainda me falta um dia e pouco de presídio: é agora que o vou aproveitar. Ainda vou a tempo! Tarde, mas a tempo!  

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