16.02.2022 Interessa-me particularmente a leitura (e a melancolia)

 




I

Segundo o Inquérito da Gulbenkian39% dos Portugueses leram livros em 2020. Sei que não parece, mas é uma óptima notícia. Claro que a parangona, para efeitos de clickbait, prefere destacar os 61% que não leram. Mas com as dificuldades naturais (e artificias) da vida, a concorrência aditiva das plataformas de streaming e do gaming, a despreocupação do youtube e as intermináveis horas de estéril debate televisivo, é um feito estimável que 39% dos portugueses tenham reservado umas horas da sua vida para entrar no “campo de batalha dos pensamentos alheios”.

II

Sou um leitor irrequieto. Saltito daqui para ali, abandono, zango-me, reservo, releio, paro e regresso semanas depois sem direito a quaisquer justificações sobre por onde andei (e com quem). Os livros não me merecem qualquer fidelidade. Os meus interesses particulares são recorrentemente guilhotinados por aparições arrebatadores que se intrometem lampejantes: pára tudo! tenho mesmo de abandonar este livro e ler isto, agora. Ontem foi um tal de Freud e um interessantíssimo paper que ele escreveu sobre mim em 1917: Luto e Melancolia.

III

Poucas vezes escrevo a palavra: melancolia. Porquê? por reverência, por ser verdade, por fazer parte, por estar hoje aqui e subitamente desaparecer “sem deixar grandes alterações demostráveis.”
Aceitei poeticamente a melancolia não como doença - que não o é - mas enquanto sentimento visceral reservado aos melhores, aos incompletos, aos contemplativos da “sua fragilidade humana e finitude intelectual”. Depois de 37 anos a resistir a Freud, eis uma simples explicação que tudo resolve e tudo inicia: “a sombra do objecto caiu sobre o ego”.

IV

90% dos portugueses veem televisão diariamente e só 3% admitiram pedantemente nunca olhar para a caixa mágica. 11% frequentam galerias de arte e 13% salas de teatro. Dados de 2019. Precisamos de saber o que muda depois da peste. A última vez que fui ao teatro estava cheio, mas não tanto quanto o restaurante. A Gulbenkian devia ter sondado os nossos concidadãos sobre os hábitos de jantar fora: eis uma nota de cultura particularmente interessante (pelo menos para quem tem olfato e paladar).

V

Ao que parece, as máscaras são para continuar: eis outra nota de cultura. A máscara define o português em pandemia, que a usa quando lhe é obrigado, quando lhe é recomendado e mesmo quando lhe é sugerido que a tire. 38% dos portugueses frequenta festivais e festas (de máscara). 99% dos portugueses usam máscara na rua em fevereiro de vinte vinte e dois (dados empíricos). Estou muito curioso para perceber se, quando acabar o isolamento dos pestilentos, a mascara cai.

VI

E há então no melancólico uma “premente tendência a se comunicar”, encontrando satisfação no autodesnudamento”: eis um válido pretexto para estas confissões que “não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmo, no fundo, dizem de outrem.”

VII

“A sombra do objecto caiu sobre o ego”, mas apenas porque “a escolha de objecto tinha sido feita sobre uma base narcísica.” Poucas razões ainda justificam a máscara e nenhuma fundamenta esta longa renúncia a Freud.
Afinal, estava lá tudo o que me interessa particularmente!

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