28.02.2022 Interessa-me particularmente a boa vida
No dia 26, no
vídeo em que Zelenskii se filma em frente à Casa Gorodetsky, há um momento particularmente interessante em que o surpreendente
e inesperado líder da resistência esboça um pequeno sorriso, daqueles
sorrisos amarelos, esforçados e forçados, que apenas fazemos quando sorrir é
tudo o que resta. Zelenskii aparece com aquela dignidade na decadência,
a dizer presente, para o que der e vier.
II
A Casa Gorodetsky, mais conhecidoacomo Casa com Quimeras foi desenhada no início
do século passado por um tal de Vladislav Gorodetsky, arquitecto ucraniano de origens polacas, educado em S. Petersburgo. Gorodetsky está hoje representado por uma modesta escultura na
Kyiv Passage, uma rua comercial ao estilo high street, entalado entre as
frívola Moncler e a fútil Brunello Cucinelli. Gorodetsky, sentado numa Thonet, vestido impecavelmente, bebe um café
enquanto espera pegar num livro que aguarda sobre a mesa ao lado do cinzeiro. Gorodetsky
parece Pessoa e Kiyv o Chiado.
III
Zelenskii é um
homem jovem nos seus 44 anos, baixo no seu 1,70m, com uma cara engraçada que o
humor e a circunstância lhe permitem, casado com uma arquitecta que virou
escritora. Quando apareceu sozinho, de barba por fazer e olhos inchados à frente
da Casa Gorodetsky teve imediatamente o meu arrepio: eis alguém
com quem me consigo identificar, num indesejado e imprevisível posto, a esperar, a aguentar, a
resistir, enquanto lá fora, a conjuntura mundial se demora em burocráticas e
graduais decisões de ajuda.
Zelenskii, que
pede que não usem a sua imagem nos escritórios desmilitarizados da antiga
Ucrânia, ganhou irremediavelmente o lugar na estatuária heroica num futuro
próximo, algures numa capital Europeia, que entenda “a boa vida” como medida
para todas as vidas.
“Complique-se o que se quiser complicar, a questão da Ucrânia é muito simples e exige de nós uma resposta igualmente simples: estar totalmente do lado da Ucrânia e totalmente contra a Rússia. O resto é interessantíssimo - mas é secundário. É moralmente secundário.” Miguel Esteves Cardoso e a sua elementaridade.
V
Enquanto, na
segurança física do lugar mais remoto posto europeu, escrevo emocionalmente
inseguro sobre a guerra, as comitivas ucraniana e russa reúnem-se à mesa
para negociar. Escrever sobre a “vida
boa” é moralmente secundário. Mas, faltando-me a coragem dos ucranianos nossos
cidadãos - que, por estes dias abdicam da sua “vida boa” em território português
e se dirigem para a sua guerra - a mim, só me resta interessar-me particularmente
pelo resto, sempre sabendo que, interessantíssimo, é moralmente
secundário!
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