03.03.2022 Interessa-me particularmente o limite

 


I

A Disney adiou o lançamento do seu filme Turning Red na Rússia. A proibição da descoberta pela infância russa da história de uma menina que se transforma num panda vermelho sempre que fica nervosa, é o simbólico gesto que a multinacional do entretenimento entendeu fazer sentido para castigar Putin e a sua oligarquia. Talvez os meninos russos consigam fazer pressão para acabar com a tirania. Ou talvez devessem ter visto primeiro o filme, para aprenderem a lidar com a ansiedade dos próximos anos!
A inteligente e assertiva proposta de emmerder directamente o umbigo dos oligarcas russos está a começar a sair ao lado. Deixou a cúpula próxima do poder e dirige-se vertiginosamente, indiscriminadamente e irreflectidamente para o povo, patrocinada pelos gostos inflamados da mediania com acessos às redes socias que tudo decide cancelar.

II

Vejo (e ouço) regularmente Valery Gergiev e a sua batuta minimalista num canal de música erudita que tenho lá na televisão. Parece que apoia Putin. Não é um oligarca, mas será rico, famoso e poderoso: apto a justo cancelamento, tal como o Ballet Bolshoi e a Companhia Real de Ballet de Moscovo. Em ambas haverá com certeza artistas amantes de Putin, revoltosos amordaçados, medrosos acagaçados e uns quantos, muitos talvez, que só querem dançar.
Um povo debaixo de uma ditadura tem medo. A tática de esperar que seja o povo russo a derrubar Putin é muito perigosa, para eles.
A guerra não pode ser olho por olho. Somos melhores que isso! O Tribunal Penal Internacional vai entrar em acção. É por aqui!

III

Quando o espaço mediático esquecer Zelensky, quando as cidades ucranianas se assemelharem visualmente a Alepo e as suas ruas forem meros cenários de guerrilhas de jogo-de-computador, a solidariedade com a Ucrânia começará a esfumar-se: eis um receio.



IV

“Uma equipa especial de investigação, criada pelo Tribunal Criminal Internacional, atravessa fronteiras da Europa na caçada por criminosos para trazê-los à justiça.”
Eis a sinopse de Crossing Lines (2013-15), uma série cujo título alude à passagem da fronteira para levar à justiça os limites do tolerável. Na vida-real, o Tribunal Penal Internacional vai entrar em acção por Putin. Finalmente! É por aqui. E quando for acusado, quem é que o vai lá buscar?
A equipa de Donald Sutherland é coisa de ficção.

V

Fez ontem dois anos que foi detectado o primeiro caso de peste em Portugal. O paciente zero. Mas a peste, a paranoia e o medo ainda não acabaram, pelo menos por aqui. Contrastando com uma europa de leste em perigo real, onde as máscaras são acessórios de fobias supérfluas, por cá parece que nos esquecemos de rever a sua pertinência e as suas múltiplas contradições. Um hábito mantido por olvido.

V

O Ikea e a HM já não vendem na Russia e na Bielorrússia. 15mil trabalhadores do IKEA irão para casa. Da HM não sei. A classe média baixa russa terá de tentar não partir copos e aguentar-se com calças desbotadas enquanto os ucranianos morrem, fogem e combatem. Os oligarcas continuarão a beber em copos de cristal inquebrável, impecavelmente vestidos com tecidos perenes. Há quem já não beba vodka em Portugal. O David Chipperfield parou com o projecto da renovação da Central Telegráfica de Moscovo. Também já não tinha voo para ir acompanhar a obra. A manifestação de apoio à Ucrânia caminha por limites tortuosos. Interessa-me particularmente a hipocrisia. 

VI

Zelensky ainda está vivo!


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