11.03.2022 Interessa-me particularmente o tédio e o desconforto
I
Quando esta
guerra ainda mal era guerra, discutia-se lá por casa se o seu estímulo não era afinal
coisa elementar: Putin estaria apenas entediado. Apavorado pela peste,
aos 69, sentado só na sua interminável mesa, Putin teria tido dois longos
anos para se demorar num negativo e auto-destrutivo balanço de vida
e concluir que, afinal precisava apenas de se sentir vivo e, principalmente, de mostrá-lo. Mas rapidamente abandonámos tais pueris observações, trocando-as
pelas usuais complexidades geoestratégicas e outros rebuscados detalhes históricos.
Foi pois
certamente bastante reconfortante descobrir um artigo assinado por Julius
Strauss para a Spectator. “Putin is bored”, ao mesmo tempo
que dava corpo especulativo às nossas suspeitas, devolvia-nos a vontade de estar
errado. Putin, enquanto personificação do mal, fruto da tal reductio ad
hitlerum de Leo Strauss, não podia ser apenas movido pelo nosso humano sentimento
de tédio.
Como cura mágica para o enfado, chegou aos nossos dias, através de transviada noção de Schopenhauer: a fruição das artes. Qualquer humano em monotonia, poderia resolver-se perdendo tempo a consumir alta-cultura, destas, tendo a arquitectura como a mais baixa e a música, o estadium mais elevado das maravilhas da produção criativa.
Ora, o nosso mundo contemporâneo diz-nos que a nível de fruição é o entretenimento que se deve consumir. E por isso as grandes multi-nacionais do fast-entertainment, do fast-fashion e da fast-food apressaram-se a cancelar-se à Rússia. Entediar o cidadão médio russo: eis uma estratégia para atacar Putin. Depois de falhado o emmerder dos Oligarcas, eis o ennuyer das classes médias. Não será certamente preciso registar, que no fim, quem se quilha é o de sempre.
III
Qualquer um de
nós, num acesso de enfado ou numa corriqueira crise de meia idade, pega no que tem
mais à mão: um novo emprego, investimentos em NFT´s da moda, gratificação sexual fora de casa ou aulas de
violino no youtube, e avança em cirúrgicos ajustes na procura de uma qualquer
noção de satisfação instantânea. Mas e se, por mero acaso, dispuséssemos de
um exército obediente, armas nucleares e a velhinha propaganda? Nem eu, nem
Julius Strauss, nem o próprio Schopenhauer desconsideramos os poderes
ocultos do aborrecimento. No seu artigo, Julius lembra-nos Raskólnikov de Dostoievski,
mas podia-nos ter lembrado principalmente de Mersault de Camus.
IV
Se esta guerra se demorar a Rússia ficará algures entre a idade média e Cuba, afastada dos progressos do capitalismo. À primeira visa, a privação do entretém parece aborrecido. Contudo, lá pela Rússia, com eles lá ficaram Dostoievski, Gorki, Stravinksi, Tarkovsky, Tolstói, Gogol, Rachmaninoff, Tchekhov, Eisenstein, Vertov ou Tchaikovski, entre outros que o Ocidente tanto gosta de cancelar. Não ficam mal, mas também é particularmente interessante comer batatas fritas ensopadas enquanto se vê no youtube a nova colaboração entre a Cardi B e a Megan Thee Stallion.
V
Quando esta
guerra ainda mal era guerra, eu estava aborrecido. E ainda estou! A fruição das
artes ajuda, mas a resignada verdade é que o entediamento feito melancolia é
afinal uma disposição.
Os próximos
anos, vão ser anos muito (no mínimo) desconfortáveis.

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