25.03.2022 Interessa-me particularmente a inevitabilidade
I
Por estes dias de guerra, os media querem ensinar-nos que afinal os russos não pensam como nós. Há um nós e um eles, numa perpétua condição de opostos inconciliáveis. Nós, o Ocidente das liberdades, berço do classicismo greco-romano, da democracia e da respublica, da revolução francesa, do liberalismo e do estado social. E eles, o Oriente déspota, igualmente cristão mas num cristianismo outro, esventrados pelos mongóis, macerado pelos czares e moído pela URSS, então uma raiz incompatível com as glórias do progresso que por cá respiramos.
Nesse idílico maniqueísmo que tudo simplifica e resolve, é tão adequado desenhar o desafio de Steiner, um mapa de cafés para procurar essa tal de Ideia de Europa. Uma Europa onde Steiner nos diz que em Moscovo, cidade já “subúrbio da Ásia”, não há cafés.
II
A ideia de Europa é inevitavelmente diferente da ideia de Ocidente. Pedro I quis ser Europeu e fundou São Petersburgo e alguns cafés. “O computador, a cultura do populismo e o mercado de massas fala anglo-americano.” Em Moscovo, onde não há cafés, havia fast-food, fast-fashion e fast-entertainment. Moscovo, que talvez não tenha querido ser Europeu, quis ser Ocidental. Tal como Pequim. Há cafés em Pequim?
O McDonalds de Moscovo foi substituído pelo Tio Vânia. O “M”, passou a “B”, manteve o vermelho e o amarelo e provavelmente um simulacro do gorduroso cardápio que já conhecemos. Como ser Ocidental não sendo Ocidental?
“Havemos de descansar!” Mas o Tio Vânia, o verdadeiro, ensina-nos o que nos queremos recusar a aprender. Tchekhov, mostra-nos a desilusão de uma vida não vivida e a inevitabilidade de, ainda assim, a termos de viver. Viver com a frustração da derrota, o insucesso da escolha, o fracasso das utopias: eis algo que só um russo nos conseguiu ensinar. Afinal, talvez o re-baptismo da cadeira de hambúrgueres oleosos seja também uma inevitabilidade. Como ser Ocidental não sendo Ocidental?
IV
Zelensky ainda vive. Mas Mariupol já é Alepo, “as suas ruas já se assemelham a meros cenários de guerrilha de jogo de computador”. Hoje, já sabemos que Putin está entediado: falta-lhe um Império.
V
Dia 18 de Abril, eis a extensão de uma data: um novo dia para retirar as máscaras. Há nisto outro maniqueísmo primário sem zonas de intercepção. Há quem ainda use militantemente; há quem ainda use por exaustão. Há ainda quem ainda use porque se esqueceu de si próprio e se arrasta por aí, inevitavelmente, como a Sofia, sobrinha de Vânia.
VI
“De resto nada disso é importante. Mas repara nisto. Durante vinte e cinco anos remói ideias alheias (…) lê e escreve sobre coisas que as pessoas inteligentes já sabem há muito tempo e de que os tolos não querem saber – quer dizer, vinte e cinco anos a despejar oco para o vazio. E ao mesmo tempo que presunção! Que pretensões! Reformou-se e ninguém o conhece, é um perfeito desconhecido; quer dizer que durante vinte e cinco anos ocupou um lugar que não era dele. Mas olha: caminha como um semideus!”
V
E já há poucos cafés no Porto. Numa qualquer Ideia de Europa têm de estar, inevitavelmente, os clássicos russos.


Comentários
Postar um comentário