20.04.2022 Interessa-me particularmente o percurso

 

I

Pode uma arquitectura contemporânea de gesto simples ainda surpreender? Eis uma inquietação diária de quem faz ou pensa a arquitectura neste século que pouco tem(os) produzido para nos deslumbrar. Mas falamos de uma arquitectura ainda arquitectura – e não contaminação disciplinar; uma arquitectura ainda espaço – e não manifesto político, moral ou sustentável; uma arquitectura ainda criação – e não técnica em progresso. Pode?
Talvez um austero cilindro de betão, de 9 metros de altura, desenhado por Tadao Ando, enfiado na rotunda da Bourse de Commerce de Paris possa ser essa resposta. Pode? Talvez sim, mas desde que esse gesto simples confronte e dialogue com um gesto antigo complexo.

II

Para um melancólico patológico, três horas de pura resignação são particularmente consoladoras. Noite de Sábado pré-páscoa, sexta-semana de exibição, estavam ainda quinze pessoas (com máscara) em sala para ver o Drive My Car (2021) do Hamaguchi.
Tchekhov dentro de um Saab vermelho e outros problemas de linguagem (e muitos problemas de comunicação) em três horas. Os filmes andam cada vez mais longos. Talvez para se aproximarem das séries e serem esquartejados em blocos consumíveis de quarenta minutos numa qualquer plataforma de tendências. Ou talvez porque em resistência, o cinema não precisa de acelerar-se, e a si reserva-se o direito de usar o nosso tempo, o tempo que precisar.


III

Um simples cilindro de 9 metros de betão é, contudo, coisa cara. Talvez tão cara quanto um longo filme com o número preciso de personagens para realizar (e conduzir) o Tio Vânia.  E o Saab vermelho, personagem principal. Em tempos de arquitectura política, moral e sustentável, é bom ver um Saab vermelho pelas ruas da cidade.
Para os amantes de cidades, há um tipo de promenade architecturale que só se consegue de carro. Penso no carro que uso, um Golf Cinzento de 1998, pertencente a uma faixa etária já legalmente banida do centro de Lisboa. Certos partidos amantes da ecologia desejam abater o meu carro. Não é um Saab 900 turbo, modelo desenhado em 1979, mas para lá desejo que o meu caminhe. Mas em tempos de arquitectura política, moral e sustentável, o mais certo é o meu carro de 24 anos ser brevemente condenado à pena capital. Motivo: antiguidade!

IV

Zelensky ainda vive! Mas já não entusiasma tanto, pois não? É do hábito! Falará amanhã ao parlamento português em jeito de pop-star na sua tourné. Foi este o Churchill que nos calhou em sorte. Não me parece que estejamos mal servidos.

V

Finalmente: por cá os média dedicaram-se por estes dias a reunir opiniões favoráveis ao fim das máscaras. Já perdi as forças para mastigar o tema. Conheço as caras de metade dos meus alunos. Mas ainda não lhes conheço o queixo. Há ainda outra metade que religiosamente vai além da norma. Gostava de lhes perguntar porque é que ainda usam aquilo no recreio e na rua. Mas tenho receio do que vou encontrar como resposta! Entre a obediência acrítica e o medo irracional, dois anos e tal depois é melhor nem tentar saber o que povoa as mentes dos adolescentes. Também pode ser só do hábito!

VI

Talvez um austero cilindro de betão, de 9 metros de altura, desenhado por Tadao Ando, possa ser a resposta a esse desejo de uma arquitectura (ainda) de gestos simples. Ou então foi só o prazer de andar por lá sem máscara que temperou o percurso! A arquitectura afinal também nunca foi só gesto, espaço e criação. 

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