01.03.2024 Interessa-me particularmente o regresso à rua
I
“Ai, não
consigo explicar. É uma emoção tremenda! Graças a deus, muito obrigado, Primark
em Matosinhos. Tou emocionada. Não consigo falar mais nada! Tou contente,
Primark em Matosinhos. Do fundo do meu coração”. Assim a Dona Glória imortalizou
a abertura da loja do Norteshopping.
Em Setembro, a
FNAC de Santa Catarina (no Porto, para quem desconheça o meu lugar de fala) vai
fechar para dar espaço a uma Primark. Ontem, quando se soube da notícia, a
para-intelectualidade portuense carpiu. Nos anos 2000, quando para aqui vim
definitivamente, era na FNAC de Santa Catarina que passávamos horas a descobrir, ao
estilo biblioteca-pública, as boas-novas das arquitecturas e das artes. Sem
capacidade económica, usávamos a boa-vontade (ou o desinteresse) dos
funcionários da FNAC para descomplexadamente consumirmos, sem consumir.
Mas quando a
para-intelectualidade da FNAC dos 20 anos finalmente teve poder económico para
consumir, migrou para a cómoda macro-escala da Amazon, ou para a soberba micro-escala
das pequenas livrarias e lojas de discos em resistência.
A para-intelectualidade
portuense não chora a FNAC. Nostalgicamente, chora já não ter idade para ir à FNAC!
II
É apenas mera
curiosidade que o triângulo Rivoli-Batalha-Passos tenha epicentro na FNAC. Se a
para-intelectualidade portuense, na sua vaidosa subida da Passos Manuel, já não
olha para as antigas Galerias Palladium à procura das melhores “práticas
culturais”, então o fecho na FNAC é - a bem dos mercados - plenamente justificado. A Primark, como
bem sabe a Dona Glória, ganhou o seu lugar (da fala) nas dinâmicas da fruição
urbana portuense. Consumir roupa barata – ou apenas na sua vertente ´ver montras´
- é, desde os tempos de Warhol e do Independent Group, uma das praxis equiparadas ao que
acontece dentro dos melhores salões da erudição. Os Smithsons sabiam, envergonhadamente ou talvez não, que seu “regresso
à rua” só era possível através das Primarks.
E com o barulho
das luzes, nem se nota a falta de qualidade das fibras da vestimenta!
III
Depois de anos
no Shopping, a Primark chega à rua! Diz no Jornal que copiamos as melhores práticas
europeias: há Primarks na Gran Vía em Madrid e em Birmingham. “Aqui
importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas,
ciências, estilos, indústrias, modas, maneira, pilhérias, tudo nos vem em
caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da
alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas
mangas”. Eça, pois claro.
Somos irremediavelmente
uns tard-venue.
Que chegue agora
a nossa hora de voltar à rua (nem que seja, através da Primark).
Nos meus anos de
jovem, para além do interesse pelas coisas da FNAC, éramos de esquerda.
São modas! Se o
pós-modernismo nos levava in-directamente ao individualismo - de direita, pois
claro! – também nos encaminhava do “tudo é cultura” às “práticas
culturais” identitárias – portanto, de esquerda, a menos que fossem
localizadas e religiosas: aí de direita. No mix, a entourage universitária fez-nos
esquerdalhos da velha guarda.
Talvez fossemos apenas
um nicho - e não uma moda – num mainstream assepticamente desinteressado (como
nós afinal o éramos, ainda que portando, identitáriamente, a bandeira de um privilegiado
Estado Social que no tinha levado ali).
Hoje os jovens
parece que tendem para a direita. São modas!
V
“Acreditamos
no futuro!” repete-se insistentemente, de punho a meia-haste, em Aparelho
Voador de Baixa altitude (2002), filme da sueco-portuguesa Solveig
Nordlund. Nos inícios de milénio, apanhei um trecho final na RTP2
que me acompanhou nostalgicamente até hoje. Felizmente os revivals estão na
moda, e o Batalha passou há uns dias esta adaptação de um conto de Ballard. “Acreditamos
no futuro!” quer precisamente dizer o seu contrário. A descrença é
acompanhada da devida resignação.
Acreditamos no
futuro? É difícil agendar o dia e a hora do início da incredulidade, mas foi
mais ou menos no dia que se sonhou o regresso à rua.
VI
Tou contente,
Primark em Santa Catarina. Do fundo do meu coração! Mas ao contrário da Dona
Glória, eu consigo explicar.

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