14.07.2021 Interessa-me particularmente o cansaço




I

Meu caro Sérgio Sousa Pinto, escrevo-lhe porque estou cansado!
Saberá bem o meu caro amigo, tal como eu, que os tempos da peste têm sido particularmente complicados na tentativa de mostrar (tornar público) algum equilíbrio e alguma moderação, daquela forma tão particular que nos permita ainda parecer querer pertencer ao aparente lado certo da história.
Meu caro amigo, por coisas do cargo que ocupa, ora veja lá se não me quer ajudar aqui nuns interesses particulares: a peste, o equilíbrio, a injustiça e a liberdade.

II

Saberá o meu caro Sérgio, porque anda nessas lides, que debaixo do anuído lema “temos de fazer qualquer coisa”, foram novamente lançadas para o espaço público um novo conjunto de medidas arbitrárias, incongruentes e permita-me, particularmente criadoras de injustiça (a que no dia seguinte, como habitualmente, já estamos irremediavelmente habituados). Consta que ainda somos o país da União Europeia com as medidas mais restritivas e genericamente abaixo de nós, apenas algumas ditaduras seleccionadas.
Mornos e mansos, ou apenas cansados, pobres e desalentados, por cá, nós portugueses, vamos aceitando tudo sem grande fé que nada em particular vá resolver seja o que for, enquanto por baixo-da-mesa procuramos artifícios para fugas pouco éticas que desdizem os sacrifícios oficiais.
Neste ano e meio de peste portei-me bem caro Sérgio. Mantive-me limpo e monástico como se devia – o que para um introvertido não é particularmente difícil, diga-se – mas, como um bom liberal à maneira antiga, lá ia refilando, ripostando e criticando enquanto cumpria, sem grande subversão física, as regras decretadas para o bem-comum.
Mas meu amigo, estou cansado!

III

Do alto dos meus 37, sinto-me um cidadão de segunda por ainda não ter tido a oportunidade de obter o meu livre-acesso
Veja-se o que me cabe em sorte, ter de provar-me saudável para cumprir os requisitos mínimos da liberdade! Para cidadão (de primeira), não basta sê-lo, há-que prová-lo, numa nova variante de mulher de César misturada com a boa culpa à priori dos restos do judaico-cristianismo.
Estou cansado, caro Sérgio! Já andamos a levar isto longe demais, e há demasiado tempo. O que me diz o meu amigo?

IV

O que lá vai lá vai. Ao início, debaixo de uma ensurdecedora paranoia, todos queimámos as vestes à entrada de casa com medo do desconhecido. Mas a menos que a vacina falhe – e aí estamos realmente perdidos enquanto organização social - hoje já sabemos mais meia dúzia de coisas sobre a peste, o que nos permitem um outro olhar e uma outra acção. Não acha?
Da minha parte, estou cansado, caro Sérgio. E para variar, apetecia-me encontrar eco do meu, nosso cansaço, na Assembleia da República (o
ra aí está o que precisava do meu amigo!). De um cansaço de um moderado, bem longe de negacionismos e desvios iliberais. De um cansaço inconformado mas ainda assim condescendente que, por via das minhas idiossincrasias profissionais, não tive um único dia de descanso durante esta peste, que me faz perder o cabelo, o dinheiro e a utopia.

V

Caro Sérgio, por estes tempos, sinto-me um Reaccionário de uma Utopia de inspiração Social Democrata, onde uma certa indefinível ideia de Cultura seria a medida de todas as coisas.
Sou ainda um pessimista crónico que tem pouca fé neste progresso que tudo digitaliza.
Tudo culpa minha e das minhas leituras, mas também sua e das suas leituras.
O que deixarmos acontecer debaixo da peste vai-se prolongar por aí fora, por caminhos que não me agradam a mim e pelo que imagino, nem ao meu amigo.
E por isso, desde lugar seguro de independência irresponsável que tanto prezo, saturado de sacrifícios inglórios, lhe peço: interceda aí por nós, os cansados da vida, que mesmo que nos interessasse particularmente fazê-lo, estamos demasiado cansados para tal.

VI

Isto agora metem-se as férias e lá para Setembro, não se esqueçam, que novas temporadas merecem novos cenários. 
Também estava a falar da peste!



 

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